sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A resiliência e seus heróis




"Pensamos sempre que a vida é dura, difícil de ultrapassar essa dor que as relações sociais nos causam. Mais uma vez, cito a minha amiga e colega na ciência que aprendeu comigo e desenvolveu pela sua conta. Viver não custa, o que custa é saber viver, diz Ana Vieira da Silva.

Nem que tivesse lido o texto ou os textos de Boris Cyrulnik (Burdeos,26 de Júlio de 1937), um neurólogo, psiquiatra, psicanalista e etólogo rancês, que retirou da ciência da física o conceito de resiliência para ser usado no saber dos sentimentos dos seres humanos.

Os metais têm essa capacidade de esticar com o calor, o que poderia ser comparado à dor entre os seres humanos, e de encolher com o frio, metáfora da paz e serenidade usadas para esse aprender a viver. Boris Cyrulnik, etólogo, analista, psicólogo, vai ao ponto de definir entre os seus numerosos textos, seminários, análises, o conceito de resiliência como essa inaudita capacidade de construção humana.

  1. De facto, viver pode ser uma traição, e pode haver pessoas traidoras que, sem pensar nos sentimentos dos outros, usam os seus próprios para agir como lhes praz. Exemplos desse comportamento, existem pelo mundo aos milhares. Apenas temos de reparar na forma como vivemos hoje em dia e como vivíamos, nós, a Grécia, a Espanha, a Irlanda, temos de imediato um bom exemplo para entender resiliência. Mas, não é destes casos que desejo falar neste texto, no entanto e embora seja o caso mais próximo de nós para demonstrar como nos defendemos das fatalidades da vida. Não há dinheiro para viver como sabemos e estávamos habituados, porém reduzimos as nossas despesas e passamos a consumir um bom almoço e, mais tarde, apenas um lanche de chá com pão. Se a fome nos acossa, aprendemos a suportar essa falta de comida. Que é devido a uma má gestão de quem nos governa, não para nos zangarmos com eles, é que a capacidade inaudita de construção humana vai acontecer, como referi antes, retirado do seu texto Os vilões pequenos patinhos, editora Odile Jacob, Paris, Janeiro de 2001, com versão portuguesa do Instituto Piaget de Novembro do mesmo ano. Texto que, em síntese, diz: fazer nascer um filho não é suficiente, explica-nos Boris Cyrulnik nesta sua nova obra sobre o tema da resiliência: dá-lo ao mundo colocando à sua volta os tutores do desenvolvimento. Isto começa muito antes do nascimento, através da mãe do líquido amniótico da mãe, do qual se alimenta e navega que banham o embrião uma determinada atmosfera psíquica. Apenas um terço das gravidezes se realizam em condições sãs. As outras são marcadas por problemas emocionais, uma patologia associada ou por angústias que criam um meio sensorial, mais ou menos perturbado, citação retirada da introdução do livro, resumida na capa do mesmo, orelha de trás. Porque os patinhos feios eram vilões ou feios? Por existir entre eles uma entidade diferente, preta, sendo eles louros, logo diferentes, com que não a desejavam perto estar. Os meses passaram e o patinho feio passou a ser um cisne grande, majestoso, de penas pretas brilhantes que nadava com calma entre os que os tinham desprezado. O patinho feio teve a força de aceitar o menosprezo dos vilões e até lhes ensinou como pescar, comer pão molhado em água e ser o seu amigo. Uma vez nascido, o bebé, hipótese do autor que usa aos patos e ao cisne negro como metáfora etóloga, para provar a hipótese central, citada duplamente antes desta linha, segundo provoque prazer ou não no adulto, vai desencadear nestas reacções diferentes que, por sua vez, vão realizar ou não o seu desenvolvimento. A história está retirada de um conto de Hans Christian Andersen (Odense,2 de Abril de 1805Copenhague, 4 de Agosto de 1875), que escrevia para esquecer o menosprezo dos seus vizinhos e familiares, por ser feio e pobre, de corpo mal formado, o patinho feio que virou cisne para as crianças. Soube suportar esse menosprezo e escrever os contos e peças de teatro que encantavam às crianças. Fonte: ANDERSEN, Hans Christian – Uma visita em Portugal em 1866. 4.ª ed. [S.l.]: Gailivro, 2003. p. 54.
Resiliência ou resiliência é um conceito oriundo da física, que se refere à propriedade de que são dotados alguns materiais, de acumular energia quando exigidos ou submetidos a stress sem ocorrer ruptura. Após a tensão cessar poderá ou não haver uma deformação residual causada pela histerese do material – como um elástico ou uma vara de salto em altura, que verga-se até um certo limite sem se quebrar e depois retorna à forma original dissipando a energia acumulada e lançando o atleta para o alto.

É medida em percentual da energia devolvida após a deformação. Onde 0% indica que o material sofre deformações exclusivamente plásticas (plasticidade) e 100% exclusivamente elásticas (elasticidade).

O cientista inglês Thomas Young foi um dos primeiros a usar o termo. Tudo aconteceu quando estudava a relação entre a tensão e a deformação de barras metálicas, em 1807. Resiliência para a física é, portanto, a capacidade de um material voltar ao seu estado normal depois de ter sofrido tensão.

A resiliência dos materiais, como o aço, é factor determinante para os profissionais de engenharia em todo mundo quando trata-se de estruturas de grande porte como: Ponte Rio-Niterói e a Cidade Administrativa de Minas Gerais e outras inúmeras estruturas construídas pelo homem. Este termo também tem origens na Economia da Natureza ou Ecologia. Pode ser definido como a capacidade de recuperação de um ambiente frente a um impacto, como por exemplo, uma queimada. Logo, o bioma cerrado costuma apresentar uma grande capacidade de resiliência após uma queimada.

Actualmente resiliência é utilizado no mundo dos negócios para caracterizar pessoas que têm a capacidade de retornar ao seu equilíbrio emocional após sofrer grandes pressões ou stress, ou seja, são dotadas de habilidades que lhes permitem lidar com problemas sob pressão ou stress mantendo o equilíbrio.

Resiliência é a capacidade de saber andar três passos em frente e um para trás, sem se amedrontar. O próprio Cyrulnik aprendeu esta força de reconstruir a vida, no dia em que na França toda a sua família era levada pelos nazis para serem concentrados num campo, mortos e queimados. Tinha ele 9 anos e uma enfermeira escondera-o na sua camioneta, escapando assim da morte.

Nasceu no seio duma família judia. O seu pai era ebanista, e tomara parte na legião de resistência. Durante a Ocupação, os seus pais o confiaram a una pensão para evitar ser preso pelos alemães, pensão que o levou à Assistência Pública francesa. Posteriormente, foi adoptado por uma professora da infância bordalesa, Marguerite Ferge, quem o escondera na sua casa em Rue Adrien Baysselance. Mas, durante una rusga policial, foi levado pela polícia com outros judeus à sinagoga de Bordéus. Escondeu-se em todos os sítios, sem temor, até nas casas de banho, evitando assim outras rusgas. A polícia conduzia aos judeus à estação de Saint Jean para serem deportados. Um dia, estava fora da sinagoga, uma enfermeira o levara oculto na sua camioneta. A seguir começou a trabalhar como empregado rural com nome falso, Jean Laborde, pouco antes da Liberação da França. Os seus pais foram deportados, falecendo durante a Segunda Guerra Mundial. Trás a contenda, foi acolhido por uma tia em Paris. Foram todas estas experiências que o motivaram a estudar psiquiatria.

Foi assim que a resiliência passou da teoria física para ser parte da ciência da psicologia, assim com, o conceito resiliência, central na psicanálise.

 Desde 1996 tem sido o Director de estudos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade de Sud-ToulonVar e responsável da equipa de investigações em etologia clínica do Hospital de Toulon. Os seus trabalhos têm-lhe permitido desenvolver o conceito de Resiliência, como um renascer do sofrimento. Aportara também precisões ao termo oximoros, mas a sua contribuição na ciência reside no seu compromisso: Cyrulnik aborda a etologia como una encruzilhada de disciplinas. É membro do patronato da Coordination française pour la Decennie da cultura, da paz e não-violência.

Desde 1998 é também presidente do Centre National de Création et de diffusion culturelles de Châteauvallon e membro directivo da oficina en França, coordenadora do programa Decénio das Nações Unidas.

O seu saber tem sido a base da minha criação das especialidades Antropologia da Educação e de Etnopsicologia da Infância, que ainda gostava de ensinar. Mas, como não me é permitido, pelos menos escrevo estes ensaios…!

Raul Iturra

Agosto 2011

Aventar

sábado, 23 de novembro de 2013

Amigos





Falar de amizade masculina é um risco. O mundo latino pensa, de imediato, que a linguagem amorosa é de uso exclusivo do universo feminino ou, quanto muito, do foro íntimo de um casal heterossexual (homem-mulher). Hoje em dia, há homens que rompem as barreiras classificatórias dos sentimentos, recorrendo ao uso das palavras que, até há pouco tempo, eram identificadas com a fragilidade do mundo feminino. Na minha opinião, o engano é duplo: será que a mulher é tão frágil como se pensa e o homem tão masculino, que não sabe brincar com palavras atribuídas ao casal? Nestes dias, falar de camaradagem masculina pode levar a enganos, sobretudo a partir das novas leis. Quanto à fragilidade feminina, com o mundo em crise financeira, é um facto quase impossível. Facto que faz a mulher mais masculina que feminina: deve trabalhar com todos os seus músculos e todo o seu corpo, caso se empregue como mestre-de-obras. As palavras podem enganar sobre a pessoa da qual falamos.


As palavras não só definem, como especulei no meu livro de 2010, Marx um devoto luterano, em edição, como também pensam e levam-nos a enganos. Se um homem diz amo-te, sem sabermos de quem se fala, podemos pensar que se declara a uma mulher, quando, de facto, está a fazer uma galanteria ao seu pai, filho, irmão ou a um amigo da sua intimidade. Amar não é uma palavra que é pensada como se só existisse no campo do feminino. Grande engano, porque entregar e receber sentimentos de simpatia e intimidade, é um sentimento universal. Parece-me que ninguém é capaz de viver sem essa emotividade, que, por vezes, ocupa-nos todo o tempo, seja um ele ou uma ela e de qualquer idade. Os sentimentos não têm sexo: existem ou não existem. Pode-se amar um amigo, uma amiga, dito por outras palavras, os sentimentos são sexualizados por quem fala ou pelo sentimento que experimentamos por alguém. Tenho consultado todos os dicionários, todos eles envolvem a sexualidade desnecessariamente, ao definir amor como a paixão que se sente por alguém, sendo paixão o desejo de tomar conta de uma pessoa, de dar a nossa asa a quem gostamos muito, com respeito, confiança e sinceridade. Essa pessoa a quem contamos os nossos segredos mais íntimos, na certeza que ficam apenas com ela. O que é, porém, a paixão? O sentimento de uma grande inclinação ou predilecção por um ser que até pode, repare leitor, levar ao sentimento libidinalpredileção, definido por Freud (seguido pelos seus discípulos) a partir do texto de 1923: O ego, o superego o isso ou Id. Neste triângulo, o Isso ou Id tem o papel de vigiar que um superego qualquer queira fagocitar à pessoa que se diz que se ama. Grande pecado, para os que acreditam numa divindade, crime para quem o faz por divertimento, como no caso da Casa Pia.


Este conjunto de pensamentos, nascem de uma brincadeira que um amigo me fez: não se importe, em breve estou ai e vou ser todo seu. Onde está o sexo de quem diz a frase? Está nas letras terminais da mesma, que distingue masculino de feminino. Ora bem, qual a diferença entre as duas vogais? O hábito de separar seres que, sem cerimónia, hoje em dia se podem juntar, facto que tenho observado, em trabalho de campo, na análise da mente. Uma altura, passava uma noite de natal ao pé de um grupo de camaradas, bêbados até caírem, que passavam os braços pelo pescoço uns dos outros, de forma tão fraternal, que comovia; havia também os mais novos que gostavam de acariciar um corpo masculino, forte, bem formado, e o amigo mais velho deixava-se tocar: era carinho! Ao passar por eles correu a voz: olha que vem ai o Senhor Doutor. De imediato o seduzido, começou a bater no mais novo. Lá fui eu, à uma da manhã, até ao lenho que ardia para aquecer a fria noite com neve, separei-os, tomei-os pelo pescoço que cheirava a álcool, abracei-os e estabelecemos uma conversa qualquer, acabando a minha intervenção com a frase os amigos não se batem, amam-se e em amar não há pecado nem crime nenhum. Por ali ficámos junto ao lenho e os meus camaradas, contaram-me alguns dos seus problemas, sentimentos e traições de amar a mulher mãe dos seus filhos, mas seduzir outra.


Há hábitos e costumes que se calam ou se contam ao ser da nossa intimidade, com calma, serenidade e confiança. A libido está no Id de Freud de 1923, ou no de 1906: On sexuality, texto que define aberrações cometidas com crianças, como a pedofilia e outras narrativas psicanalíticas. Diz-se que o hábito não faz o monge, frase irónica e metafórica, por existirem vários não monges, vestidos, como quem diz, de monge ou cordeiro. Há esse respeito, esse amor que nasce da camaradagem de pessoas que demonstram o seu carinho com o respeito das palavras usadas e o uso do corpo da outra pessoa. Há certa distância que nasce da camaradagem, como tenho observado ao longo de cinquenta anos de trabalho de campo. Até aparecer esse sentimento de amar que apenas se demonstra com a libido em acção.


O meu problema é ser o totem das pessoas que estudo. A maior parte das vezes contam factos que, se existem, não têm a segurança de narrar. As crianças ainda não púberes, por não entenderem a sexualidade, brincam aos casamentos, seja um ele com uma ela e vice-versa, ou dois eles, especialmente se são camaradagens rituais, como entre os Picunche da Cordilheira dos Andes, que estudei, os Baruya da Nova Guiné estudados por Maurice Godelier, entre 1975 e 1979, ou Malinowski no arquipélago das Ilhas Kiriwina, entre os Massim, entre outros. Actualmente, é raro o antropólogo que faz trabalho de campo vivendo com os seus analisados. Ou, por outras palavras, que corra o risco da camaradagem, como intitulei o presente o texto. Muitos deles são de outra cultura e não dizem o que vêem entre os, por si, estudados. Jorge Dias e Manuel Vieigas Guerreiro, foram capazes de observar a camaradagem dos Maconde de Moçambique, mas silenciaram a vida libidinal que só veio a lume na mais recente (acrescentada) edição do livro do António (Jorge Dias).


Persisto no trabalho de campo. Tenho tido a honra de receber propostas de iniciação sexual por parte de outros homens, que tenho rejeitado não por causa deles, mas pelos constrangimentos da minha cultura, pois só em 2010, a camaradagem segredada entre homens, passou à luz do dia. Não há distinção de sexualidade nesta minha hipótese de camaradagem entre homens, que devo desenvolver com mais tempo e cuidado, a seguir…


Raul Iturra

Agosto 2011

Aventar

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Budismo e Psicanálise



"Somos seres simbólicos... Seres de imaginação e de identificação. Travamos uma luta conosco e com a vida diariamente. Luta esta, vista e revista em nossas ansiedades, medos e lutos inexoráveis. Vivemos no passado e no "por vir". Nunca estamos presentes no "aqui e agora". A Psicanálise e algumas filosofias orientais, como o Budismo, apresentam várias características singulares, mas também características onipresentes e entrelaçadas entre si. Tanto a Psicanálise quanto o Budismo prerrogam a "presença" no aqui e agora, de maneira a abraçar o acaso e o novo, sem estar a todo tempo atravessado por "fantasmas" do inconsciente e por ilimitadas lembranças do passado, e nem na expectativa de um futuro criado a todo o momento em nossas mentes ávidas.

O Budismo fala muito no conceito de "Vazio". O que é o "Vazio"? Vazio é a presença pura, incondicional e nua da consciência humana. É o estar vivo. É este Vazio que possibilita o "Tudo". Muito diferente do niilismo, que trata da perda de sentido para a vida. Este "estar vivo", esta presença pura e constante, que sempre esteve conosco, mas que de alguma forma nos esquecemos e nos distanciamos, é a presença que nos faz criar, dar sentido ao mundo, nos identificarmos com o mundo, as pessoas, com as coisas, e criar conceitos.

Vemos o mundo através de "Filtros". Filtros de percepção. Tanto a Psicanálise, como a Meditação, as religiões e filosofias transcendentes, como o Budismo, tratam de alterar esses filtros, proporcionando uma renovação constante deles, ou eliminação de muitos deles, descatexizando as fixações de nossas mentes, e trazendo a possibilidade de estar no mundo de forma mais relaxada, compassiva e integrada. Apesar disso, o homem sempre será um criador de conceitos, basicamente um ser desejante; se não quer desejar algo, ou não deseja algo, deseja a idéia de não desejar.

A Psicanálise vem ocupar um canal de nominar ou dar sentido ao Vazio, através de seus próprios conceitos. Já o caminho do budismo consiste em justamente se liberar dos conceitos, e apenas sentir; é ver a vida a partir de outro nível, que ultrapassa a dualidade Inconsciente/Consciente, Ego/Não Ego, Coração/Mente, Racional/Intuitivo, e outras mais, mostrando-nos a prática do "Percebimento". O que o Princípio de Prazer nos diz? Diz que, após um acúmulo de tensão, nos liberamos dessa tensão através do prazer. No Budismo há a velha máxima dita por Buda que fala que o nascimento é sofrimento, envelhecimento e doença são sofrimento, e morte é sofrimento. Mas, ao mesmo tempo, Buda ensinou que existe uma causa para o sofrimento, existe um fim para o sofrimento e existe um caminho de prática que dá um fim ao sofrimento. No Budismo toda felicidade ou prazer atingido na vida nada mais é que uma diminuição do sofrimento, mas que é totalmente fugaz e impermanente, sendo o objetivo de dar fim ao sofrimento o verdadeiro objetivo da vida, que é atingido quando chegamos ao "Nirvana", libertação espiritual ou Iluminação. Então podemos ver que Freud e Buda não estavam tão longe em termos de se entender a penúria do homem e as vicissitudes de seus desejos, prazeres e satisfações. Libertação nada mais é que a libertação das emoções negativas."(…)

Shaka, Rafael Vilaça, do Iluminador

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Falar, entender…as crianças (IV)





"Esta citação revela o império do desejo de entender que a relação cultura – indivíduo, não é apenas uma problemática denominada por Kraepelin um problema civilizacional, é apenas, como referi antes, uma relação de interacção social entre as leis que governam o comportamento humano, orientam a educação dos mais novos e desenvolvem um adulto capaz de se separar da vida social, por mutações biológicas causadas na base de situações emotivas contraditórias, manifestadas pelo adulto, como no caso das formas rituais paranormais de amok, lata, koro, comportamentos que observa nas culturas citadas no parágrafo anterior e redige no seu texto de 1904: Psychiatrie comparée [23], onde refere formas de agir perante o que eu denominaria a traição da cultura ao indivíduo que, até essa altura, vivia em paz, no meio dos ditames da lei escrita ou tradicional, rituais e mitos, sentimentos definidos e formas materiais de os exprimir que não feriam as relações das pessoas entre si, sempre que essa forma de agir prescrita for cumprida. Situações observadas, sentidas e a desenvolver sentimentos na educação dos mais novos. Eis o motivo pelo qual os organicistas não se ocupam apenas com processos de transtorno mental, mas também de teorias educativas, da forma observada por Edwin Guthrie, Melanie Klein, François Dolto e os outros terapeutas referidos.

Formas educativas que procuram dar a entender que não é apenas a relação entre adultos e descendentes de uma mesma família o facto social de importância para a resposta epistemológica da criança perante o grupo, também o é o comportamento do grupo em frente de si próprio, grupo que inclui os mais novos como a parte maior e mais vulnerável e que a pouco e pouco reparam, na sua autonomia e independência perante a vida, sem poder ser independente da alimentação e do carinho que os outros indivíduos devem dispensar. Dai que a criança não seja um subentendido: a criança não entende o que se fala e fica mais exposto ao que vê fazer de diferente aos costumes culturais. Este é o contributo que Kraepelin retirou de Java e abriu um caminho para que os eruditos da mente pudessem comparar e retirar formas de comportamentos convenientes à formação do indivíduo. É impossível não sintetizar os comentários que aparecem no livro, esse pioneirismo de reparar [24]em dois conceitos fundamentais para a nossa análise: o etnocentrismo que acaba por ser o elo que orienta o comportamento: o que nós somos é o melhor, ou o que fazem os outros é com eles; o peso do comportamento cultural e a sua manipulação, que acaba por ter um limite, o da racionalidade emotiva do comportamento entre pessoas. O etnocentrismo define tabus e dinâmicas de comportamentos, traça a linha limite das formas de reprodução humana no saber e entre quais das pessoas da população a afectividade é possível e a relação empática define-se como simpática ou antipática. É o que os autores que introduzem Kraepelin manifestam.

Roudinesco e Plon consideram que “historiquement, l’ethnopsychoanalyse est née de l’ethnopsychiatrie fondé par Emil Kraepelin », texto no qual concluem que a etnopsicologia « c’est l’expresion trnasculturelle qui a fini par s’imposer en lieu et en place d’ethnopsychiatrie ou d’ethnopsichoanalyse, trop chargé d’ethnocentrisme[25]. Segundo ponto que queria comentar antes de entrar pelo texto das idades da criança e do seu entendimento do mundo: uma definição de Etnopsicologia para entendermos a parte do processo educativo que a Etnopsicologia da infância trata e que fica referido nas páginas anteriores, com o acréscimo do etnocentrismo, conceito fundamental para nos entendermos com a infância. Etnocentrismo definido mais tarde por Claude Lévi-Strauss a pedido da UNESCO e que teria feito as delícias do autor da Etnopsicologia[26] que acabou por dedicar a sua obra a relações de imigração para entender de forma comparativa as formas de pensamento, fossem estes etnocêntricos ou a fugir das formas mandadas pela interacção social: o etnocentrismo é o desenvolvimento do meu Eu entre os meus, ou do meu grupo social, regras, normas e, especialmente, o fechar as relações aos “selvagens” ou pessoas que vivem à beira do nosso agir, com regras não aceites por nós, ou, pelo menos, para nós, apenas para os outros, enquanto que “indígena” é o habitante natural de um grupo que tem a sua geografia e os seu território, que defende por todos os meios, até pela guerra ou pela união parental.

Há um terceiro e final comentário do próprio Freud sobre a temática. Discípulo de Wundt na Alemanha, influenciado por Kraepelin e os outros intelectuais germânicos, Freud não consegue não comparar as suas análises sobre a história e processo formativo das neuroses e a histeria, sem estudar grupos australianos com os quais compara a conduta europeia. O resultado é o texto Totem and taboo. Some Points of Agreement Between the Mental Lives of Savages and Neurotics, escrito em 1913[27]. O texto de Róheim que tenho invocado, diz: «Si nous avons commencé cette partie en nous référant à la définition même de Freud, c’est pour souligner le fait que l’ethnopsychanalyse n’est pas une discipline nouvelle ; elle est contenue dans la psychanalyse. Elle est une facette et plus précisément (et en premier approximation) celle que questionne l’interface entre psychisme et culture…».[28]. É assim, comenta o escritor, como Freud se afasta da clínica para entrar no modelo comparativo de comportamentos nem sempre da sua cultura. Um Freud, como comenta o texto que tenho preparado sobre La Psychanalyse Française [29], que coloca o autor fora do campo analítico francês, ferozmente antijudaico para aceitar as ideias filosóficas do autor. No entanto, são ideias que ajudam a perceber essa diferença epistemológica que permite dizer que se pode falar perante as crianças, porque não entendem. Muito embora o caso contrário seja também real: o que a criança diz, não é percebido pelos adultos."

FIM


Raul Iturra

Julho 2011

Aventar