Falar em produção de produtores significa,
para mim, falar nos meios, ritualizados ou não, através dos quais tem lugar a
produção de seres humanos que trabalham a terra. A produção de produtores é uma
parte de um processo muito mais vasto de reprodução social. Torna-se
necessário, por isso, esclarecer, antes de mais, o que entendo por reprodução
social e o que esta é enquanto processo.
Ao examinar, em 1958, o ciclo de
desenvolvimento dos grupos domésticos, Meyer Fortes definiu o conceito como um
processo que inclui todos os mecanismos institucionais, normas e actividades
consuetudinárias, que servem para manter, renovar e transmitir, o capital
social entre as gerações. Goody (1958) que, como Fortes (1958), também escreveu
sobre o tema, centra o estudo da reprodução na análise das regras de herança e
de sucessão através das quais são distribuídos os direitos de propriedade entre
gerações sucessivas. O mesmo autor veio, mais tarde, a refinar as suas
hipóteses, incidindo a sua reflexão sobre as modalidades de herança e os seus
efeitos nas relações interpessoais e principalmente no casamento, visto como
uma forma de controlo de propriedade de uma importância vital tanto para a
produção como para a reprodução (1976), o qual tem vindo a ser controlado,
enquanto instituição, pela Igreja e pelo Estado, nas sociedades ocidentais
(1983). Bourdieu (1976) procede à distinção entre reprodução biológica,
cultural e social, assinalando que é por meio destes três sistemas que todos os
grupos procuram transmitir, à geração que se lhes segue, através do matrimónio,
a totalidade de poder e de prestígio que herdaram. Meillassoux (1973) defende
que, nas sociedades agrárias, o campo da análise da reprodução social é aquele
que diz respeito ao controlo sobre a força do trabalho, ou seja, sobre pessoas.
O controlo exercido sobre as mulheres por meio do casamento é, na sua
perspectiva, um elemento fulcral neste processo. Godelier (1975, 1979, 1981)
afirma, por sua vez, que as estruturas produtivas e reprodutivas se encontram
no campo do parentesco, enquanto expressão demográfica da sociedade e no campo
do ritual, visto como o conjunto de ideias que operam na produção de relações
sociais.
Quer se trate das definições explícitas de
Fortes ou de Bourdieu ou dos elementos analíticos fornecidos por outros, o
campo de estudo da reprodução social parece conter elementos que, como Harris e
Young (1981) sublinharam, ultrapassaram o campo restrito da aldeia, da produção
e da tecnologia. Enquanto processo, a reprodução social tem como resultado a
prática social de um sistema gerador dos seus próprios elementos da
continuidade (Iturra, 1982). Refira-se que todas estas observações fazem uma
referência, implícita ou explícita, a sociedades não industriais contemporâneas
estudadas por antropólogos sociais. Note-se, também, que a ênfase, na análise
deste fenómeno, se tem centrado em relações como o casamento, o trabalho, a
propriedade e o conhecimento. No que diz respeito a este último, o seu estudo é
feito nas rubricas do costume ou da cultura ou ainda na do ritual. A reprodução
social como processo parece assim consistir no modo como se organizam elementos
constituintes estruturais, o casamento, a terra, o trabalho e o conhecimento,
que asseguram a continuidade da sociedade, com ou sem mudança.
A meu ver, o estudo da reprodução social
também requer que sejam tomados em consideração os factos da história económica
e do pensamento religioso, na medida em que a variação nos termos materiais e
nas ideias tem como resultado uma produção diferente de relações sociais. Se
sublinho aqui a importância de que se revestem as ideias religiosas, tal
deve-se ao facto de ser fundamentalmente na religião que encontramos,
abstraída, sistematizada e exprimida pelas pessoas, nas áreas camponesas, a
racionalidade das relações sociais. O processo de produção de produtores, tal
como se desenrola num grupo camponês, fornece-nos os elementos, que nos
permitem compreender o modo pelo qual os seres humanos são ensinados e
treinados através de um ciclo ritual, que se encontra contido em ideias
religiosas. Mostra-nos, também, que o casamento, sendo uma relação social
proclamada, assinalada e aceite como o ritual oficial que começa a produção
social, bem como a biológica de seres humanos, mais não é do que uma das muitas
formas criadas pelas pessoas no âmbito das suas práticas reprodutivas. Este é o
seu lugar social, apesar do carácter sagrado que lhe é conferido pelas ideias
religiosas formais, pelo ritual oficial e pelas próprias pessoas, carácter esse
que se encontra reflectido na própria análise antropológica, obscurecendo a
dimensão cultural do casamento e o valor de outras práticas. Como disse
anteriormente, muitos autores colocando de parte as razões culturais que os
criam, fazem do ritual e do conhecimento o centro das suas análises da
reprodução social e do casamento a relação social estabelecida da qual
todas as outras derivam.
Desde que consideremos que as ideias
religiosas representam o principal conjunto de ideias da racionalidade
camponesa que opera na produção e reprodução social; e desde que o ritual seja
pensado como uma via de publicitar relações sociais e de comunicar ideias com
vista à produção de produtores, então podemos ver o casamento através de uma
outra perspectiva problemática, observando-o como mais um ritual criador de
relações sociais e como mais uma relação entre várias outras, tudo isto
constituindo fenómenos que necessitam de explicação.
É exactamente neste aspecto que desejo
agora centrar a minha análise, na medida em que quero tratar, de entre todos os
factos que podem ser tidos em conta no estudo da reprodução social, aqueles que
se encontram relacionados com a produção social de seres humanos, observada já,
através da análise do casamento. A minha hipótese exploratória assenta na
consideração de que existe uma contradição entre a ideia de que a reprodução
deve ter lugar no interior do casamento e as condições que rodeiam a
afectividade deste. A terra, o trabalho e a tecnologia têm sido até hoje os
principais recursos envolvidos na reprodução camponesa e, por isso, quer se
tratasse de um momento histórico em que a terra se encontrava concentrada e o
trabalho disperso, quer de um outro em que o contrário sucedia, com a terra
dispersa e o trabalho concentrado, a sua aquisição, conjugação ou acumulação,
têm constituído o objecto da manipulação de relações sociais por parte dos
produtos. Tal como a terra é manipulada no sentido da concentração ou no da
divisão e a na tecnologia no da continuidade ou nos da invenção ou
substituição, assim também os seres humanos, através da manipulação das relações
sociais, são dirigidos para várias funções que permitem manter viáveis os
recursos disponíveis. Se não existisse manipulação dos diversos laços sociais –
pelas próprias pessoas ou por vontade externa –, poderia em algum momento
suceder, que houvesse indivíduos em excesso num determinado território ou que
existissem demasiados direitos do mesmo tipo sobre a mesma coisa.
Esta manipulação tem lugar entre dois
extremos: o de juntar aqueles que, pela natureza da sua relação com as coisas,
permitirão a concentração de recursos e o de levar à dispersão dos restantes,
habitualmente a maioria. Aqueles que ficam têm de procurar organizar um grupo
produtivo adequado, o que é feito, nas áreas camponesas dos nossos dias, por
meio da procriação e da activação dos laços de parentesco e através de uma
série de contratos diferentes, que definem uma relação entre camponeses e
senhores, em tempos mais recuados. Estes eram os tempos em que a terra estava
concentrada nas mãos de uns poucos, o que dificultava as condições de casamento,
sem pôr em causa a produção de produtores. Quando a propriedade camponesa
começa a aparecer, o casamento ganha uma maior importância, mas a produção de
produtores torna-se para eles próprios problemática, devido ao seu número e ao
conjunto de direitos de que são portadores. Entre estas duas situações
históricas bem diversas, têm lugar um certo número de estratégias camponesas,
cuja variação parece estar ligada à superioridade que vai tendo a produção
destinada ao mercado sobre a produção de bens de uso e à mudança correlativa
nas condições de troca, que ocorre com a passagem da organização do trabalho
camponês pelos senhores à sua subordinação ao capital mundial (Iturra, 1978,
1981).
Existe todo um conjunto de alternativas
geradas pelos produtores, sendo possível entrever, pelo menos, quatro formas,
por via das quais a reprodução social se efectiva: por meio de um sistema de
reprodução em que o casamento é combinado com o celibato e a ilegitimidade,
como observou O’Neill (1984) para o Nordeste de Portugal, pela combinação do
casamento com o não casamento, como pude detectar na minha investigação em
Portugal; pela manipulação dos laços de parentesco, visando a construção de uma
força de trabalho através da troca de herdeiros, da exclusão de filhos da casa
dos pais e de tornar a classificar dos parentes, bem como por intermédio das
trocas de trabalho, como demonstrei no caso da Galiza (1978, 1980, 1981); e,
também, mediante a integração diferencial dos membros do grupo doméstico no seu
seio, entre os que partem e os que ficam, como Bouquet (1984) refere para o
Centro de Portugal. Estas observações espelham o casamento – quer enquanto
ritual, quer como relação social – como um campo onde se desenvolvem as
estratégias que visam a obtenção de recursos humanos ou materiais, em qualquer
grupo doméstico, afirmação, cuja pertinência pude verificar entre os camponeses
do vale central, no Chile, da Galiza e do Centro de Portugal. Pessoalmente,
gostaria de discutir todos estes tópicos em função das duas asserções inter-relacionadas:
as primeiras têm a ver com a investigação sobre o lugar que o casamento ocupa
na sua relação com outras práticas reprodutivas e rituais; as outras duas estão
relacionadas com a função que se atribui ao casamento, a de este servir para
angariar recursos.
Distinguindo, as duas primeiras podem-se
definir assim: o casamento é apenas uma de entre as várias formas de um sistema
de práticas reprodutivas; o casamento é um rito de um ciclo de rituais, cuja
finalidade comum é a produção de produtores. As outras duas são: o casamento é
a fase final de um processo de escolha, pelo qual são adquiridos e conjugados
recursos e materiais; o casamento é uma instituição redistributiva regulada
pelo lucro.(…)
Raul Iturra, do
Aventar
Julho 2011