domingo, 27 de janeiro de 2013

Linguagem, Poder e Relações Internacionais(I)


                                                                                                  
   Nildo Viana

As relações entre poder e linguagem já foram abordadas por muitos autores e expressam uma preocupação com a questão cultural na sociedade moderna. A linguagem não é neutra e nem está acima das lutas sociais, mas, ao contrário, é perpassada por estas lutas, é expressão delas e toma parte nelas. Um conjunto de pensadores contribuiu, de uma forma ou de outra, para pensar as relações entre linguagem e poder, tal como Foucault (1996); Bakhtin (1990); Fromm (1979); entre outros. No entanto, os aspectos envolvidos no interior da relação linguagem e poder são muitos e nem todos foram enfatizados. Assim, Foucault focaliza a questão da censura no discurso; Bakhtin analisa a luta de classes em torno dos signos; Fromm observa a existência de um filtro social do discurso; e assim por diante. A nossa pretensão, no presente texto, é abordar a questão da linguagem e poder relacionada com as relações internacionais, bem como apontar para uma perspectiva de superação da dominação lingüística. Isto significa que iremos enfatizar as relações lingüísticas entre os Estados-Nações e entre estes e determinadas etnias e não a relação de etnias entre si, embora possamos lançar mão de comparações que possam ser esclarecedoras. Isto significa também uma delimitação temporal, isto é, iremos abordar as relações lingüísticas a partir da emergência dos Estados-Nações, ou seja, do capitalismo, e não em períodos históricos anteriores.

Desenvolvimento Capitalista e Dominação Linguística

Partiremos aqui de uma periodização do processo de desenvolvimento do capitalismo mundial e das relações lingüísticas que lhes são correspondentes. Para isso, a contribuição de Calvet (2004) é fundamental. Calvet parte de uma discussão sobre glotofagia para discutir as relações lingüísticas instauradas a partir do processo de colonização. O capitalismo nasce a partir da acumulação primitiva de capital, no qual o capital industrial é incipiente mas tem sua supremacia garantida pela supremacia do capital comercial (Marx, 1988; Viana, 2003). O chamado “sistema colonial” abre um processo de exploração internacional que marca um início de um processo constante e ininterrupto de reconversão capitalista. Os países capitalistas imperialistas subordinam os demais países e produzem modos de produção subordinados que vão, paulatinamente, se constituindo enquanto modo de produção capitalista subordinado. Este é o caso do escravismo colonial (vigente no Brasil e Estados Unidos), que era um modo de produção subordinado que foi substituído por um capitalismo igualmente subordinado. A partir da implantação do capitalismo nos países subordinados, o seu desenvolvimento passa a seguir a lógica da subordinação . Assim, o processo de desenvolvimento capitalista segue uma dinâmica espontânea, marcada pela reprodução do processo de produção e reprodução do capital que gera a acumulação de capital, bem como conseqüências e necessidades derivadas (reprodução ampliada do capital, reprodução ampliada do mercado consumidor, tendência declinante da taxa de lucro, desenvolvimento tecnológico, etc.), e que é abalada pelas lutas de classes, na qual o movimento operário cria obstáculos para este desenvolvimento espontâneo, proporcionando novas contradições e abrindo espaço para possíveis revoluções e rupturas, o que gera uma rearticulação do modo de produção capitalista. Assim, a história do capitalismo é marcada pela sucessão de regimes de acumulação que significam não somente mudanças no processo de produção como também na esfera estatal e nas relações internacionais. Aqui focalizaremos apenas as mudanças nas relações internacionais e deixaremos de lado, na medida do possível, as demais mutações nos regimes de acumulação.

O primeiro estágio das relações internacionais com a emergência do capitalismo é o colonialismo, durante a acumulação primitiva de capital, e este é substituído pelo neocolonialismo, já no regime de acumulação extensivo (que entra em crise no século 19) e, posteriormente, que se vê suplantado pelo imperialismo financeiro do regime de acumulação intensivo (até início do século 20) e, posteriormente, pelo regime intensivo-extensivo (em declínio a partir da década de 60) que é acompanhado pelo imperialismo oligopolista e, por último, pelo regime de acumulação integral, o regime atual, iniciado na década de 80 do século 20, e que institui um neoimperialismo (Viana, 2003; Viana, 2004). Este processo de mudança nas relações internacionais não ocorre apenas na esfera da produção e reprodução do capital, mas também nas demais esferas da vida social, incluindo a cultura e, mais especificamente, a linguagem.

Como bem observou Calvet, o colonialismo reproduz nas colônias a divisão de classes sociais e cria fenômenos “secundários” pouco analisados pelos pensadores que se dedicaram ao estudo do imperialismo (Lênin, Bukhárin). E neste processo se incluem as relações lingüísticas. A subordinação social é acompanhada por uma subordinação lingüística. Esta, como coloca Calvet, se inicia com o “direito de nomear”. Os contatos entre colonizadores e colonizados é marcado pelo preconceito étnico e por ideologias justificadoras da “inferioridade” dos colonizados. Os colonizadores manifestam um menosprezo pela cultura autóctone e isto se revela na questão dos nomes atribuídos aos colonizados.

Em primeiro lugar, há um desprezo pela autodenominação dos colonizados, que são simplesmente ignorados. Em segundo lugar, eles são nomeados arbitrariamente. Os habitantes do Brasil foram chamados índios, devido ao fato dos portugueses pensarem que haviam chegado nas Índias, embora esta denominação não fosse nem dos nativos brasileiros e nem dos “indianos”... A origem do nome da República dos Camarões também é reveladora. Calvet coloca que os primeiros navegadores portugueses denominaram o Rio Wuri como “Rio dos Camarões”, isto porque os marinheiros viram camarões neste rio. Assim, este nome passou a designar a região: Camerones, em espanhol; Cameroons, em inglês; Kamerum, em alemão; e Cameroun, em francês. Assim, continua Calvet, os Kotoko, os Bamilekê, os Fang, os Fali e os Duala são chamados de “camaroneses”. Outro exemplo citado por este autor no que se refere ao direito de nomear se encontra na origem da palavra “canibal”, que significa hoje “antropofagia”, o hábito de comer carne humana. Este termo surge pela primeira vez no Diário de Navegação de Cristóvão Colombo que une a palavra caribe e a informação de que os caribes comem carne humana, criando a expressão “canibal”. Assim, Calvet cita um dicionário etimológico francês que explica que “cannibale” é um empréstimo do espanhol “canibal”, que tem sua origem em “caribal”, que vem do Caribe, palavra cuja origem se encontra na língua dos caribes. Assim, o sentido original da palavra se perde e autodenominação é substituída por uma heterodenominação que se torna pejorativa e acaba sendo generalizada para outros povos colonizados, agora todos denominados “canibais”...

O direito de nomear significa que a autodenominação nativa é subjugada pela hetero-denominação. Assim, o Um define o Outro, como já dizia Simone de Beauvoir (1978) ao se referir às relações homem-mulher. A mulher se define pela definição do homem; da mesma forma, o colonizado se define pela definição do colonizador. Este processo de dominação lingüística é um elemento para diminuir a resistência dos colonizados.

Isto ocorre no período do colonialismo. A mutação lingüística se inicia quando os colonizadores com suas forças militares e administrativas, acompanhados por comerciantes, se implantam na região colonizada e logo realizam a cooptação de setores nativos, realizando uma aliança que beneficia a ambos e significa a exploração e dominação da população nativa. Estes setores nativos cooptados são os primeiros a adquirirem a língua do colonizador. Os grupos sociais intelectualizados – no sentido profissional do termo – também acabam adotando a língua do invasor. Assim, como coloca Calvet, a língua dominante, a do colonizador, é adotada pelos nativos próximos ou representantes do poder ou por aqueles que são constrangidos a se relacionar com ele. Estes grupos aliados e privilegiados de nativos possuem um bilingüismo que entra em contradição com o monolingüismo da maioria absoluta da população nativa.[...]
(continua)