sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Desigualdade

No EqualityImage via Wikipedia



António Campos


Durante vários anos, até deixar de ter prazer em polemizar com os blogues neoliberais, houve uma pergunta que fiz repetidamente, sem nunca obter resposta, nas suas caixas de comentários. Não exagero se disser que a fiz centenas de vezes, formulada das mais diversas maneiras, procurando sempre a maior clareza possível. Nunca ninguém me respondeu: nem no "Blasfémias", nem no "Insurgente", nem no mais inteligente e menos famoso de todos: o "Semiramis", infelizmente já desaparecido da blogosfera.

A pergunta, dividida em três alíneas, era esta:

a) Se a desigualdade económica, ao promover a competição, conduz a uma maior produção de riqueza, haverá um nível óptimo de desigualdade que assegure este benefício sem custos que o excedam?

b) No mesmo pressuposto, haverá um nível a partir da qual a desigualdade se torne inútil ou contraproducente para a produção de riqueza?

c) Presumindo a existência deste nível óptimo, como pode ele ser definido - quer em termos quantitativos, quer em termos descritivos?

Nunca nenhum neoliberal me respondeu a esta pergunta. Não me custa a acreditar, no caso dos dois blogues que citei em primeiro lugar, que a não tivessem compreendido, apesar de ela ser perfeitamente clara: não há estupidez mais profunda do que a que resulta da cegueira ideológica. Já no caso do "Semiramis", não pude deixar de notar o incómodo que esta pergunta causava à autora, que aparentemente compreendia a pergunta mas não queria ou não podia responder-lhe.

Há silêncios que são eloquentes. Se alguém, defendendo a desigualdade económica, se recusa a considerar sequer a hipótese de haver um nível óptimo de desigualdade, das duas uma: ou vê o mundo em termos dicotómicos - opondo uma desigualdade arquetípica, inexistente no mundo real, a uma igualdade igualmente arquetípica e igualmente inexistente - ou pensa, mas não quer dizer, que considera a desigualdade económica um valor em si mesma, da qual quanto mais, melhor.

Como George Bush ("I don't do nuance"), também os meus interlocutores neoliberais eram incapazes de, ou estavam indisponíveis para, reconhecer matizes. Sucede, porém, que quem não vive em Nefelococígia pode facilmente verificar, pelo simples expediente de olhar à sua volta, que entre igualdade e desigualdade a variação é contínua. Não faz sentido, portanto - quer em termos morais, quer políticos, quer sociais, quer económicos - discutir politicamente dois arquétipos opostos e intrinsecamente impossíveis como se entre eles não houvesse toda uma gama de possibilidades reais.

A querela entre igualdade e desigualdade encaradas em termos abstractos e absolutos não é uma discussão política: é uma discussão metafísica, se quisermos, ou teológica. A opção política, situada necessariamente no âmbito do possível, só pode ser entre mais igualdade e menos igualdade. E é neste âmbito do possível, que os teólogos do mercado não podem ou não querem ter em conta, que talvez encontrem resposta as perguntas que ponho no início deste artigo.

Ou melhor: resposta não, respostas. Não há um critério único para determinar o grau óptimo de desigualdade económica, mas uma variedade de critérios que poderão levar a soluções diferentes.

Um destes critérios, de um pragmatismo puramente económico, é o seguinte: uma sociedade saudável é suficientemente desigual para que os seus membros sejam motivados a subir na vida, mas não tão desigual que sejam impedidos de o fazer. Por este critério, a Suécia é uma sociedade mais saudável que Estados Unidos da América ou o Reino Unido, uma vez que a ascensão social é estatisticamente mais provável para os suecos do que para os americanos ou para os britânicos.

Um segundo critério é pragmático do ponto de vista social: a desigualdade económica não deve atingir níveis que causem ou agravem disfunções sociais como as que se enumeram neste livro, a que já me referi em posts anteriores.

Um terceiro critério é moral: numa sociedade de abundância não deve ser permitido que ninguém, por mais reduzidas que sejam as suas capacidades ou o seu mérito, desça a um nível degradante de pobreza.

Um quarto critério decorre do imperativo democrático: sendo a riqueza e o poder reciprocamente convertíveis(1), a desigualdade económica nunca deve chegar a um nível tal que dela decorra uma desigualdade política. Mesmo dando de barato a hipótese extremamente improvável, e certamente inverificável, de que há uma boa justificação moral ou económica para que o gestor duma empresa ganhe 466 vezes mais do que a senhora subcontratada que lhe limpa o gabinete, nada justifica que o gestor tenha mais poder sobre si próprio e sobre as políticas da República do que a senhora da limpeza. O gestor não pode ter, como na prática tem, uma prerrogativa de veto sobre os programas políticos que o voto da senhora sufragou.

Estes critérios, e outros que possam ser aventados, levarão provavelmente a que se definam como toleráveis níveis de desigualdade diferentes; mas nenhum deles está perto sequer de justificar as desigualdades obscenas que caracterizam as sociedades actuais.

Quase tudo o que escrevi acima foi sobre a desigualdade económica. Muito mais haveria a dizer sobre a desigualdade social, ou de estatuto - ou seja, desigualdade na integração social, na dignidade pessoal, na liberdade de escolha, na participação política, na influência social e no usufruto do Estado de Direito. Mas isto, que parece outra história, não o é.

(1) Quanto mais êxito uma dada sociedade tiver na redução desta convertibilidade, mais elevado se torna o nível de desigualdade económica que pode sustentar politicamente. Daqui decorre, por exemplo, que para a sociedade portuguesa ser politicamente saudável, corrupta como é, não lhe bastaria atingir um grau de igualdade económica semelhante ao da Suécia, mas teria provavelmente necessidade dum grau de igualdade maior.

https://blogger.googleusercontent.com/tracker/7013405610039526108-4703589450777623621?l=legoergosum.blogspot.com
JOSÉ LUIZ SARMENTO
Out.2010

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terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A Actual Civilização

Canada's Museum of CivilizationImage by ViaMoi via Flickr

António Campos



Hoje, mais do que antes, a vida é uma luta onde a pior das fraquezas consiste em não ter dinheiro e o único ideal recomendável é ganhar dinheiro. Essa fraqueza e esse ideal bastam para avaliar a presente civilização. Ela não transforma o mundo num lugar aprazível, nem torna o ser humano melhor. As guerras, a violência, a miséria, a pobreza, a opressão do ser humano pelo ser humano, o salariato,  e a exploração da natureza pelo ser humano, etc., têm demonstrado que a civilização só se desenvolve produzindo-as; elas são indispensáveis ao seu funcionamento.
Funcionamento que se alimenta no progresso, isto é, no constante crescimento das necessidades. Quanto mais aumentam as necessidades e as exigências da «humanidade», ditadas pelos especialistas de gosto e paladar das massas, tanto mais trabalho é necessário para as satisfazer. Assim, a sociedade humana mais civilizada é aquela que trabalha mais. O resultado deste progresso é o de conseguir absorver todos os instantes do indivíduo, assegurando as suas necessidades materiais, lúdicas, espirituais, culturais. E interditando, seja em que momento for, que o indivíduo se ocupe de si próprio e que desenvolva o mais possível autonomamente o seu carácter singular. Chegamos assim, já o sentimos, a uma cada vez maior artificialidade da vida. A nossa civilização ao beneficiar predominantemente o Ter em todos os domínios da vida social, contribuiu ao gregarismo dos espíritos e à despersonalização. A singularidade dos indivíduos é esmagada pelo nivelamento supostamente igualitário.
Todas as grandes cidades são parecidas de Singapura a Nova Iorque, passando por Lisboa, os mesmos hediondos edifícios habitados por zombis que se alimentam de produtos químicos e congelados, vendo as mesmas séries televisivas e ouvindo as mesmas músicas pré-fabricadas. Toda a classe política debita os mesmos discursos de uma ponta a outra do planeta. Trezentos e sessenta dias por ano: «Progresso, inovação, desenvolvimento, blá, blá…». Para mudarmos as coisas não basta erguermo-nos contra este ou aquele governo ou contra a forma estatal de organização das sociedades e promover o associativismo baseado numa relação pacífica com a natureza, nas liberdades, no respeito pelo outro, na ajuda mútua. Torna-se imperioso rejeitar o progresso, questionarmos as potencialidades libertadores da tecnologia, criticarmos a ideia de neutralidade da indústria, da técnica, uma simples ferramenta que só tem de estar em boas mãos.
Mas, as coisas só mudam se os indivíduos pensarem com a sua própria cabeça em vez de confiarem a existência e a liberdade aos poderes exteriores. Livre e responsável, o indivíduo encontra o seu próprio poder e as suas potencialidades, ficando apto para fazer e assumir as suas próprias escolhas. Sem a vitória do indivíduo sobre ele próprio, sem essa libertação profunda de si mesmo, tudo restará ilusório. Porém, se essa libertação se concretiza, podemos conceber para breve o afundamento geral da nossa orgulhosa civilização.
(autor desconhecido)

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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Pobreza

PovertyImage via Wikipedia



António Campos


E se nós, sociedade, exigíssemos dos economistas - que também são técnicos - o que exigimos dos médicos? O médico não se limita a explicar a doença - deixa essa explicação ao biólogo - mas procura, prioritariamente, curá-la. Se tratássemos os economistas como médicos e não como biólogos, então uma das suas prioridades seria, certamente, combater a pobreza em vez de nos explicar porque é que temos que nos conformar com ela.

A pobreza é uma daquelas coisas que todos sabemos o que é mas não conseguimos definir facilmente. Mesmo que nos atenhamos ao aspecto puramente material, as perplexidades levantam-se logo aí. Quando falamos de pobreza ou de riqueza material estamos a falar de rendimento ou de património? Todos conhecemos pessoas com "muito de seu" e rendimentos modestos; e também pessoas com rendimentos elevados mas com pouco ou nenhum património. Na falta duma correlação positiva evidente, podemos arranjar uma fórmula, que será sempre arbitrária, para converter uma coisa na outra. Por exemplo: p x x% = r, representando p o património, r o rendimento e x o factor de conversão. O problema é que o valor de x não é fixo nem decorre da natureza das coisas. Pode ser convencionado para certos efeitos, nomeadamente fiscais, mas é inútil quando se trata de distinguir conceptualmente entre riqueza e pobreza.

Uma solução elegante para a dificuldade de fazer esta distinção seria declarar que a pobreza não existe, do mesmo modo que para os físicos não existe o frio: o que há é mais ou menos riqueza, mais ou menos calor. Isto pode resolver o problema abstracto, mas não resolve o concreto: o frio não existe em absoluto, mas pode-se morrer de calor insuficiente; a pobreza não existe em absoluto, mas pode-se morrer de riqueza a menos.

Em termos materiais absolutos, podemos considerar "pobre" quem não dispõe de meios suficientes (considerando tanto o rendimento como o património) para subsistir. Não é neste sentido que vou utilizar as expressões "pobre" ou "pobreza". Para quem está nestas condições, a falta de meios materiais é a condicionante absoluta, o facto bruto que define a sua pobreza. Todos os outros critérios são, neste caso, dispensáveis - mas não são dispensáveis para justificar o facto de muitas pessoas serem consideradas como pobres, do ponto de vista dum certo consenso social, apesar de viverem materialmente um pouco acima deste limiar. E muito menos explica que certas pessoas sejam consideradas pobres enquanto outras, eventualmente com rendimentos inferiores, não o são (pensem nos casos que conhecem pessoalmente e entenderão ao que me refiro).

A definição de pobreza material que proponho neste post, e exclusivamente para efeitos deste post, é puramente convencional. Convencionemos assim que a pobreza, na sua vertente material, é a condição de quem vive suficientemente acima do limiar de subsistência para gozar de algumas das condições de conforto (mas não de todas) que constituem a norma no seu contexto social. Esta definição convencional tem, sobre a definição referida no parágrafo anterior, a vantagem de incluir pessoas que são "pobres" segundo a percepção social embora não vivam abaixo do limiar de subsistência. Apesar disto, ainda não é suficiente, uma vez que há outras pessoas nas mesmas condições materiais, ou até piores, que não são socialmente percebidas, nem se percebem a si próprias, como pobres.

Excepto no que respeita as pessoas que expressamente excluí desta discussão, a pobreza não é só uma questão de meios materiais, mas também uma questão de estatuto social. Ser pobre, nesta vertente, é não ter estatuto, ou seja: não ter prestígio, nem reconhecimento social, nem poder - a começar pelo poder sobre si próprio a que chamamos liberdade.

Segundo Karl Polanyi, é mais "natural" no ser humano a procura de estatuto e poder do que a procura de riqueza. Isto pode parecer contra-intuitivo numa sociedade como a nossa, que é peculiar no sentido em que é pela riqueza que se chega ao estatuto; mas este tipo de organização politico-económica está longe de ser universal, para já não falar em "natural", em termos históricos ou antropológicos. Mesmo na nossa sociedade, quem procura a riqueza pelo acesso ao consumo que ela permite acaba, se tiver êxito, por chegar a um ponto em que já não sente grande necessidade de ter mais; ao passo que aqueles que procuram a riqueza pelo poder que confere nunca ficam, por mais longe que cheguem, satisfeitos.

Esta perspectiva ajuda a compreender uma das muitas correlações que Richard Williamson e Kate Picket encontram entre a desigualdade e diversas outras disfunções sociais, correlações estas das quais dão conta neste livro. Não é uma correlação a que os autores dêem particular importância, mas chamou-me a atenção porque me ajuda a compreender certos comportamentos que observo à minha volta.

A correlação que refiro é esta: quanto mais desigual é uma sociedade, mais consumista. E isto, note-se, não só no que respeita o topo ou o meio da escala social, mas também no que respeita a base. Talvez até sobretudo no que respeita a base.


Ouvimos muitas vezes criticar os "jovens dos bairros" porque exibem telemóveis topo de gama "apesar" de viverem do RSI. Claro que não é agradável para mim, contribuinte, pagar estes telemóveis quando me contento para meu uso com um muito mais barato. Mas eu estou seguro do meu estatuto social: não preciso, para me afirmar, dum telemóvel caro. Estes jovens estão no fundo da escala, sabem que estão, e ressentem-se disto. Se não se compensam pelo real, compensam-se pelo simbólico - ou pela violência, quantas vezes ela própria simbólica. 

Há umas semanas fui acompanhado no metro por um grupo de adolescentes em que tudo gritava "bairro social". Começaram por deitar bombas de mau cheiro, depois percorreram a composição duma ponta à outra, ruidosamente, procurando obviamente chamar a atenção de toda a gente. As raparigas do grupo estavam claramente divididas entre o impulso de se distanciarem dos rapazes e o de entrarem no jogo com eles. Por fim, à saída, um dos rapazes deitou outra bombinha mesmo à minha frente; e por um brevíssimo instante olhou-me nos olhos.

E neste olhar havia uma mensagem. Ter estatuto é consumir e ter poder. O telemóvel exibe o consumo; o mau comportamento em público, a capacidade de incomodar os outros sem que os outros possam retaliar, é uma exibição de força. O que aquele olhar queria dizer era "nós não somos escumalha; também temos poder sobre vocês."

Mensagem falhada, pelo menos no que toca a primeira parte: "escumalha" é precisamente a palavra que estava, tenho a certeza, na cabeça de muitos dos que assistiram à cena.

A pobreza pode não ser só isto; mas isto é certamente pobreza.
https://blogger.googleusercontent.com/tracker/7013405610039526108-6412686131722495010?l=legoergosum.blogspot.comJOSÉ LUIZ SARMENTO
 Out.2010

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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

a (des) igualdade da criança

Drawing sessionImage by Jean-Sien Kin via Flickr




António Campos


menina pobre, desigual e doente

O estatuto socioeconómico dos pais é determinante do incremento da (des) igualdade fisiológica das crianças denominadas de educação integrada ou especial.

Parece-me evidente que, ao falarmos em criança, estamos a pensar num ser humano novo, rechonchudo, de riso aberto, olhos azuis, cabelo encaracolado, impossível de atingir na sua rápida corrida. Ou, num pequeno que adora esconder-se dos adultos, ouve histórias lidas à noite, sabe contar contos e é espontâneo para colocar os seus braços em redor do nosso pescoço. Ou nessa pequena menina que brinca a ser mãe e canta às suas bonecas, as suas preferidas canções de embalar. O mundo ideal, do tipo Huxley. Mundo ideal que raramente acontece, na vida real. Ou, por outra, verdade que atribuo mas não concerta com o mundo material.

Porque esses olhos azuis podem não ver e perguntar aos seus ascendentes como é que é…tudo. Porque essas orelhas cor-de-rosa, podem não ouvir. Porque essa boca de lábios vermelhos naturais, são incapazes de proferir palavras. Ou, porque essas pernas tolhidas, esses braços sem movimento, esse corpo que gatinha, faz a dor e, às vezes, a infelicidade dos pais ou, ainda, a sua vergonha. Apenas o escritor e pintor irlandês do Século XX, Christy Brown, soube usar o seu pé esquerdo para recriar a natureza em textos: paralisia cerebral ultrapassada, prémios de consagração da sua obra pela sua obra e não por usar apenas o seu pé esquerdo para criar. Francisco de Goya e Ludwig van Beethoven, eram surdos na idade adulta, Johan Sebastian Bach, cego quando já era pai de vários filhos. Se tiver acontecido na infância deles, nem pinturas, nem música erudita de tanta qualidade, teríamos usufruído hoje em dia.

As crianças necessitadas de educação especial, ou como se denomina hoje em dia, de educação integrada, são imensas. Perante o mundo adulto, a criança é surda, cega e muda e, às vezes, não recupera das marcas da sua origem social. Excepto se têm ligações especiais no seio de turmas onde as crianças correm, fazem ginástica, recebem o carinho normal devido a um filho e atenção especializada dos seus docentes que acabam por entender que a diferença de cor, credo, língua, faz parte da realidade do mundo.

Educação integrada, processo elementar para partilhar as dádivas de alguns, e as carências dos outros. Complementadas, denomina-se interacção social, base da vida na sociedade civil baseada em lei, direitos e obrigações. Não em vão o Código Civil Português de 1867, reformulado em 1966, em 2006 e em 2010, diz no seu artigo 6: A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas“. Saber erudito para eruditos, obrigação da criança desde os seus 7 anos de idade, saber de criança de família sabida, ignorância da maior parte da população, adulta ou infantil. Ignorância que coloca à pessoa em risco de ser criminoso.

A educação integrada, tão necessária para as crianças serem todas iguais dentro dos seus respectivos parâmetros, tem sido recentemente cancelada na procura do lucro, na poupança de serviços sociais. Uma lei que ignora que a maior e melhor mais-valia deriva do entender a vida social, quer coxo de pernas, quer coxo de conhecimento. Erro social pago pelas crianças e os seus tutores e/ou curadores – conceitos legais desconhecidos pelo grupo social responsável perante o Direito que nos governa – ao agirem de forma espontânea e natural perante a emotividade, o saber, o desejo, a procura de lucro e a alienação da mais valia entregue sempre ao proprietário dos recursos dos quais vivemos. Bem como erro do governo civil que não sabe a origem do lucro, origina maior desigualdade entre crianças e maior igualdade das que possuem bens reprodutivos.

A desigualdade das crianças é um facto social que deve-nos preocupar, não apenas pela economia, mas pelo tratamento da criança em risco de nunca mais atingir a idade adulta que lhe permita, como a Christy Brown, ser um homem de fama, ou ao irmão do meu antigo orientando de doutoramento, João Carlos Pombeiro Filipe, que criou uma forma de desenho feito com máquina de escrever e é disso que vive e se alimenta, agasalha e paga o lar.

As crianças não são desiguais, são iguais se são tratadas conforme as suas capacidades. A lei é uma presunção, não um mandato. Como diz o Código Civil de 1967, que reformulara, desde a sua criação, o Código redigido pela equipa orientada pelo Visconde de Seabra, e que entrara em vigor em Portugal um século antes, em 1867:
Artigo 1: (fontes imediatas) -1. São fontes imediatas do Direito as leis e as normas corporativas.
2.- Consideram-se leis todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes; são normas corporativas as regras ditadas pelos organismos representativos das diferentes categorias morais, culturais, económicas ou profissionais, no domínio das suas atribuições, bem como os respeitinhos estatutos e regulamentos internos.
3.- As normas corporativas não podem contrariar as disposições legais de carácter imperativo.

A educação é de carácter corporativo, mas esquece que há crianças diferentes que merecem um estatuto de estudos especiais, que tinha sido criado como Instituto de inovação educativa, IIE, mas fechado mais tarde para o governo poupar dinheiro para os seus cofres. Uma felonia que não tem perdão. As crianças desiguais nunca serão cidadãos como os outros, mas o Poder Executivo não se interessa, por motivos economicistas. A desigualdade no nosso país é evidente, o que causara em mim tanta impressão, que me levara a desenhar a imagem que imprimi ao começo…
O Governo devia saber governar, antes de se candidatar, sem planos nenhum, para orientar ao povo que anda desnorteado ao depositar a sua soberania em patifes que nos levam à falência…

de Raul Iturra
Out.2010

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domingo, 13 de fevereiro de 2011

Porque será que não aprendemos?

Portuguese Government poster from the mid-70s ...Image via Wikipedia



António Campos

"Hoje os egípcios que saíram à rua durante as últimas semanas em manifestações pacíficas e apartidárias conseguiram que a cabeça do regime caísse."
Ricardo Francisco



Porque será que não aprendemos com o que se está a passar na Tunísia, no Egipto e em outros países do norte de África?

A realidade histórica das vivências destes países nas últimas décadas mostra-nos à evidência, a existência de novas formas de neocolonialismo, de ditaduras militares em consonância com o Ocidente ‘desenvolvido’ e a consequente exploração destas populações. A situação destes povos atingiu um limite tal, que, mais cedo ou mais tarde, estes movimentos de revolta tinham de acontecer. As suas privações são inúmeras enquanto os seus líderes políticos têm acumulados riquezas pessoais, em vez de promoverem o desenvolvimento dos seus países.

Será assim tão diferente da realidade portuguesa? Há diferenças culturais, religiosas, políticas, de desenvolvimento... mas no essencial estamos também a ser vítimas de formas de poder autocrático e discricionário a nível interno, e da dita União Europeia. As pessoas já se esqueceram que tivemos um 25 de Abril de 1974? Porquê então estamos a assistir impávidos e serenos à destruição do pouco que resta do país e do seu património por uma cambada de ladrões politicamente organizados e não fazemos nada? 

O que se verifica é que estamos cada vez mais alienados, hipnotizados, por uma comunicação social que torna a nossa vida como se de uma ‘ficção telenoveleira’ se tratasse. Temos de tomar consciência e libertar-nos destas amarras que não sendo tão visíveis são mais difíceis de detetar. 

Os sindicatos e outras forças políticas de esquerda estão a ser cada vez mais manietadas financeiramente que lhes limita as suas ações e daí assistirmos a formas de protesto sem consequências nas políticas do Governo. 

Terá de partir dos cidadãos livres e descomprometidos partidariamente, com uma vertente de esquerda humanista, o desenvolvimento de ações que possam libertar-nos desta ‘ditadura encapotada’ que continua a dizer à revalia de tudo e de todos, que está a defender o interesse nacional.


A blogosfera faz eco constante deste nosso descontentamento, é verdade. Mas não podemos ficar pelas palavras. Atravé delas expressamos os nossos sentimentos de indignação e de revolta, pela crise em que cada vez mais estamos afundados, mas devemos passar à contestação e mobilização públicas sem quaisquer medos ou receios.

Se outros o têm conseguido porque razão não podemos conseguir também? Não temos coragem? É preciso chegarmos à penúria generalizada para começarmos a movimentar-nos?

As redes sociais  e as novas tecnologias têm sido um meio privilegiado conducente ao êxito dos novos movimentos sociais africanos e à queda das suas ditaduras. Mas deve aliar-se também, determinação, força de vontade e persistência.

Vamos acabar com esta palhaçada e seguir o nosso Sonho.

Fim à manipulação política encapotada. Fim à destruição do nosso património. Fim aos roubos sistemáticos como no BPN, BPP ou outros congéneres. Fim à complacência da Justiça para com todos estes atropelos à democracia portuguesa. Fim a todos os boys e outros que estão a aproveitar-se do que deveria ser para todos os portugueses.

Vamos contruir uma Nova Era, de Liberdade, de Iguadade, de Prosperidade e de Justiça Social.

Não podemos continuar por muito mais tempo de braços cruzados à espera da ruína total.

Vamos lutar pelos nossos direitos como cidadãos livres, honestos e Verdadeiros.




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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Precariedade, modos de usar

Mayday Berlin 2008Image by anna_imc via Flickr



António Campos


Fala-se agora, com uma frequência que chega a ser suspeita, da questão da precariedade, espécie de flagelo social que se abateu sobre a sociedade, qual praga do Egipto, para a fazer expiar os seus inconfessáveis pecados. Não há economista liberal que não aponte o dedo à “excessiva rigidez” da legislação laboral enquanto refere, com uma lágrima no canto do olho, o infortúnio de uma nova geração de trabalhadores desprovidos de qualquer direito ou protecção legal. Narrativa que se converte frequentemente em trabalhos de imprensa com títulos imaginativos como “A geração dos 600 euros” ou “Jovens a prazo”, nos quais jornalistas surpreendem os seus leitores, informando-os da existência de “trabalhadores independentes” que ocupam há 10 anos o mesmo posto de trabalho.

A precariedade fica assim confortavelmente arrumada: como uma desgraça cujas vítimas são objecto de compaixão; como um problema social a resolver reduzindo direitos laborais que eram inquestionáveis algumas décadas atrás. Embrulhe-se tudo isto em nebulosas alusões ao espírito do tempo, à globalização e à competitividade, para se obter uma operação de engenharia social disfarçada de imperativo categórico, recomendada pelos melhores manuais de gestão. Será possível ouvir, a algumas das pessoas que trabalham neste sentido, afirmações que demonstram o seu profundo conhecimento histórico. Repetirão, tantas vezes quanto for necessário, que a contratação colectiva, a proibição dos despedimentos sem justa causa ou as férias pagas são coisas do passado, antiguidades ou meras recordações de um tempo longínquo. O século XXI, garantem-nos, será algo completamente diferente e extremamente moderno. Os mais atentos não deixarão de encontrar, em tão radiante projecção, um regresso às relações laborais do século XIX, mas agora com banda larga, televisão digital e comunicações móveis à mistura. 

Os mais sofisticados sistemas de controlo eletrónico nos locais de trabalho também vão ajudar à festa, para ajudar cada um de nós a ser mais «competitivo», «dinâmico» e «pró-activo», termos que passarão a dispensar as respectivas aspas assim que deixar de existir qualquer diferença entre as palavras e as coisas, quando os «colaboradores» de cada empresas não fizerem outra coisa senão «colaborar». A esta luz, o repetitivo eco do termo «flexibilidade» denuncia a necessidade que as empresas têm de transformar os respectivos trabalhadores numa variável inteiramente dependente do seu ciclo produtivo, numa mercadoria descartável a qualquer momento, num custo a eliminar sempre que a sua margem de lucro se veja ameaçada. Os tempos modernos, lembrava Brecht, não começam de uma vez por todas.

A precariedade não é por isso apenas uma condição laboral ou uma relação contratual atípica. Ela resulta da articulação de variadas técnicas disciplinares e de controlo, sustentadas por outros tantos campos de saber (sociologia do trabalho, psicologia social, marketing), que não dispensam incursões poéticas, nas quais o vocabulário se revela um dispositivo surpreendentemente eficaz na difícil tarefa de transformar a realidade num pormenor e a ficção num facto incontestado. Escreve-se, nos contratos a termo, que as funções a desempenhar serão temporárias ou se devem a um acréscimo extraordinário de trabalho. E contudo, qualquer pessoa se dá conta de que as suas funções são imprescindíveis à actividade da respectiva empresa e o trabalho efectuado é tudo menos extraordinário, antes correspondendo ao funcionamento regular deste ou daquele departamento. Vemo-nos confrontados com uma desconcertante sucessão de inverdades cujas virtudes instrutivas – no que ao Estado de Direito diz respeito – não foram ainda plenamente consideradas. E não parece que haja a este respeito preocupações de monta, uma vez que se contam pelos dedos de uma só mão os juristas capazes de dizer a este respeito alguma coisa de esquerda, democrática ou simplesmente razoável.

A precariedade insinua-se assim no terreno da cultura do capitalismo tardio - enquanto artifício literário capaz de contaminar tanto as formas de comunicação como a ordem jurídica - ao serviço de um programa de recomposição das relações de poder no mercado de trabalho. A assimilação das lições de muitas décadas de lutas de classes dotou a gestão de recursos humanos de um vasto arsenal de instrumentos e técnicas de pacificação, persuasão e intimidação, que o desenvolvimento tecnológico se encarregou de facilitar, ao combinar ferramentas de produção, objectos de lazer e sistemas de controlo numa mesma máquina, que tudo se encarrega de computar . 

Isto revela-se bastante útil, do ponto de vista patronal, tendo em conta o problema substancial que é subordinar uma força de trabalho cada vez mais qualificada e instruída ao processo de acumulação capitalista, num tempo em que qualquer grão de recusa ou resistência se revela capaz de comprometer o conjunto da engrenagem. Mas tem também a desvantagem de familiarizar cada precári@, desde muito cedo, com os meios para suspender esse processo e escapar a essa dominação. Não são necessários muitos conhecimentos, nem uma dose privilegiada de atenção, para intuir os mecanismos do controlo e os respectivos pontos fracos. Trata-se de um terreno de combate permanentemente assinalado por sinais de proibido e regras de comportamento cuja subversão quotidiana dispensa qualquer programa ou estratégia. A velocidade a que se propagam conhecimentos, truques, estratégias e práticas de subtracção à vigilância patronal e aos ritmos de trabalho, são bem o sinal de quão precário é, no fundo, o uso capitalista da precariedade. E todos esses elementos se revelam úteis para distinguir os contornos de uma nova composição da classe trabalhadora, sugerindo uma pergunta pertinente - de que novo ciclo de lutas sociais poderão estes comportamentos ser um prenúncio?

Para responder a semelhante interrogação, tudo o que temos ao nosso dispôr é a crónica dos acontecimentos recentes: uma década de convulsões, levantamentos e lutas sociais, situada pouco depois do fim da história. Primeiro as grandes mobilizações por ocasião de cimeiras internacionais: Seattle (Organização Mundial do Comércio, 1999), Praga (Fundo Monetário Internacinal, 2000), Génova (Reunião do G8, 2001). Depois, durante o Inverno de 2001/2002, o levantamento popular argentino contra as medidas de austeridade impostas pelo governo tornou o país virtualmente ingovernável durante vários meses. Pela mesma altura, a emergência das primeiras mobilizações de precários, com a manifestação organizada em Milão por ocasião do 1º de Maio de 2001, rapidamente se transformou num movimento internacional difuso e extremamente diverso, o Mayday, organizado em Lisboa desde 2007 e agora presente também no Porto e em Coimbra. No Inverno de 2004/2005, a morte de dois jovens da periferia de Paris, na sequência de uma perseguição policial, despoletou uma vaga de motins, pilhagens e destruições, exprimindo a revolta concentrada nos subúrbios franceses e que desde então não deixou de pairar como um espectro por toda a Europa. Um ano depois, a criação em França de um estatuto laboral especificamente jovem e despudoradamente precário, o CPE («contrat première embauche»), deu origem ao primeiro movimento de massas de combate à precariedade, levando à ocupação de vários estabelecimentos de ensino e à realização de gigantescas manifestações de protesto. Quando, em Dezembro de 2008, o assassinato de um adolescente às mãos de um agente de segurança, em Atenas, provocou mais de um mês de confrontos e manifestações nas principais cidades gregas, a precariedade dos jovens era já apontada como uma das justificações mais generalizadamente aceites para a extensão e duração do movimento, que provocou milhões de Euros em prejuízos às grandes seguradoras e retirou ao Estado o controlo sobre diversas áreas do território urbano.

Outros tantos movimentos, protestos e mobilizações podiam ser acrescentados a esta curta enumeração, sem que a lista corresse o risco de se esgotar. Em todos eles predominou um assinalável grau de horizontalidade e informalidade, uma notável capacidade de auto-organização (que ultrapassou frequentemente as estruturas clássicas de condução do protesto e deu origem a assembleias capazes de impor as suas decisões às lideranças auto-designadas), a predisposição para alternar legalidade e ilegalidade ao sabor das conveniências do momento, a vontade de romper com as formas previsíveis e domesticadas de conflito, a difusa percepção de que era a própria normalidade, enquanto rotina, que se tornava necessário subverter, como condição para que os envolvidos pudessem construir colectivamente a sua própria história. Não terá provavelmente sido fortuito o facto de todos eles se terem exprimido numa linguagem distinta e distante da que costumam utilizar tanto o Estado como as organizações sindicais ou de Esquerda, optando quase instintivamente pela diferenciação face ao terreno da política clássica e elaborando narrativas e discursos próprios, nos quais não deixaram de se fazer ecoar as ressonâncias de lutas e movimentos passados.

Elementos suficientes para sugerir que a precariedade veio transportar para as lutas sociais uma assinalável radicalização, cujo alcance e significado estamos ainda longe de plenamente interpretar. Bastaria passar os olhos pelas páginas dos jornais que noticiaram cada um destes episódios da moderna luta de classes, para constatar a novidade que eles transportam. Os jornalistas raramente sabiam o que escrever a seu respeito, seguindo a custo as dinâmicas mais visíveis e procurando em vão os seus porta-vozes, reivindicações e programas, para quase sempre constatar a inutilidade de semelhantes esforços. Por trás da cortina não se encontrava ninguém e cada um puxava os seus próprios cordelinhos. Tudo isto contribuiu para devolver ao conflito social o carácter imprevisível que lhe é próprio e há décadas parecia subterrado. E sem que alguma vez se tenham deixado de apresentar – a todos os que integraram e agitaram semelhantes movimentos – as diversas hipóteses de conciliação e negociação que se multiplicam, seguramente por intervenção da divina providência, sempre que a revolta paira no ar.

«Soluções» para «resolver» o «problema» da precariedade foram tantas como as ocasiões em que o confronto transbordou as margens da representação e da institucionalização, embora duvidoso seja que tenham alcançado o mesmo impacto em termos históricos. E foi semelhante coisa assaz maravilhosa de se ver, pois que há tanto tempo nos habituámos a considerar excelentes aquelas lutas capazes de travar e adiar, mesmo se apenas momentaneamente, uma qualquer patifaria da tenebrosa ofensiva neoliberal, que nos esquecemos já de como lutar, não apenas para reduzir os males, mas verdadeiramente para os esconjurar. De volta parece estar a convicção de que é possível obter vitórias e recuperar ao campo inimigo a iniciativa que sucessivamente nos vem escapando. 

 Muitas destas coisas soam estranhas aos nossos olhos, que acompanham a custo e à distância o que se passa para lá da raia, sem cair na tentação de as imitar. As causas de tão singela tranquilidade social - num país onde tudo é crise, desemprego, pobreza e despudorada exploração - parecem ter substituído as da decadência, no capítulo dos problemas nacionais. Porquem dormem tão tranquilamente os precários de Portugal? Sabemos de fonte segura não se dever tal coisa aos elevados salários que auferem. Ao ver deflagrar os incêndios na Grécia – e não é das suas matas que falamos – a maioria dos observadores virou em seguida o olhar para o país que, na mesma latitude e da mesma dimensão, com alguma naturalidade se deveria seguir. E porém, tudo permanece tranquilo na frente ocidental, onde as autoridades se dão ao luxo de propor a repressão preventiva de «grupos radicais», com os argumentos democráticos que se podem imaginar .

É o atavismo, lembrou-se alguém de dizer. Naturalmente que pesam aqui as práticas informais da economia subterrânea, as redes familiares de apoio e a predisposição para emigrar, que o presente pediu emprestado ao passado mais recente. Por outro lado, os esforços de organização e mobilização de trabalhadores precários têm acusado o peso da tradição política indígena, em que nada costuma acontecer sem que um estado-maior partidário tenha tido oportunidade de se pronunciar sobre o assunto. Entre os que preferem fazer de conta que o problema não se coloca com suficiente gravidade e os que lhe dedicam toda a sua atenção, recursos e assessores, com o nobre propósito de conquistar o lastro social que lhes falta, os precários vêm sendo convocados a participar numa guerra que frequentemente se revela não ser a sua. É claro que existem, aqui e ali, pessoas de boa vontade e determinação, cujos esforços são inteiramente louváveis, pense-se o que se pensar dos resultados obtidos. É possível que, sem elas, tudo isto se encontrasse ainda pior. Mas pesa aqui também o facto – provavelmente decisivo – de estarmos a falar de trabalhadores maioritariamente jovens, que não podem reivindicar para si a experiência de participação num movimento social vitorioso, que os familiarize com os ensinamentos, a disposição e a convicção necessárias a semelhante desafio. O movimento estudantil, um caldo de cultura onde se pode desenvolver e alargar o saudável hábito da revolta e da contestação, não tem acumulado senão derrotas, impasses e hesitações, mesmo lá onde encontrou pela frente adversários inábeis e ofensivas pouco graciosas. Nas escolas secundárias como nas universidades, esta geração encontrou sobretudo a rotina da obediência e o hábito de se esgueirar por entre as gotas da chuva. A compartimentação das lutas, que produz uma separação permanente entre a escola e o trabalho (mesmo quando as duas realidade se revelam inseparáveis), também contribui para esse desconsolo.

Falta, nesta costa ocidental da Europa, um imaginário do conflito social capaz de interpelar a multidão que quotidianamente se afadiga em trabalhos a prazo. É o enorme peso dessa inércia que o movimento se vê forçado a superar. Fala-se agora, com uma frequência que chega a ser suspeita, da questão da precariedade, julgando alguns ver nela uma espécie de novo alento para a Esquerda ou um decisivo argumento a favor do rejuvenescimento dos sindicatos. E inútil será argumentar que de outra coisa se trata. Pois só no meio da tormenta se reconhecem, com a clareza e precisão necessárias para nela nos orientarmos, a altura das ondas e a potência das vagas. A tempestade que se anuncia está ainda em formação. Não se falará de outra coisa quando ela aqui chegar. Os tempos modernos, lembrava Brecht, não começam de uma vez por todas.

Le Monde Diplomatique, Setembro de 2010
Ricardo Noronha
Out.2010
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terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Seniores com direito... para gozarem de mais saúde

old people playing instruments at Xihu (Hangzhou)Image by whitecat singapore via Flickr



António Campos


A Constituição da República é generosa com as suas propostas quanto às políticas públicas referentes aos idosos. De facto, o seu artigo 72º prevê que os seniores têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal. A Lei Fundamental prevê uma política de terceira idade e que os seniores têm direito a uma pensão de velhice. Esta directriz, como é sabido, tem recebido alguns impulsos altamente positivos, mas muito há a fazer. Continuamos a viver no mundo que está a envelhecer mas onde nem todos reconhecem os idosos como um recurso valioso. A promoção da solidariedade inter-geracional continua a ser um objectivo longínquo e as medidas de apoio aos seniores, na maior parte dos casos, são tomadas avulsamente. Não deixa de assombrar o que se está a fazer nas autarquias quanto a iniciativas orientadas para seniores em áreas como: apoio domiciliário; programas de actividade física; eventos de convívio, programas culturais, excursões, etc.

Concretamente os seniores têm direito a quê? Têm direito a acompanhamento, de acordo com a sua escala de limitações, a viverem no seu domicílio pelo tempo que for viável; a permanecerem integrados na sociedade; a serem incentivados a prestar serviços à comunidade, trabalhando com voluntários, de acordo com os seus interesses e capacidades; a terem acesso a serviços sociais e jurídicos que lhes assegurem melhores níveis de autonomia, protecção e assistência. Este conjunto de direitos expressa-se em assistência médica, em acesso a recursos educacionais, culturais e espirituais e a ser tratado com dignidade.

É interessante observar que muitos seniores permanecem autónomos até idades tardias, desempenhando funções de grande influência, liderando movimentos associativos e mantendo-se ligados à estrutura familiar. O envelhecimento com dignidade prende-se com os cuidados do indivíduo e da comunidade e a capacidade de poder semear afectos ao longo da vida e até planear o seu próprio envelhecimento.

Um estilo de vida saudável requer uma alimentação que dê prazer e seja social. Os profissionais de saúde e os cuidadores de seniores devem estar atentos às seguintes realidades: o envelhecimento não é uma patologia mas está associado a necessidades e riscos específicos, pelo que devem ser encorajadas as acções de prevenção para que o regime alimentar seja variado, agradável e em porções compatíveis; a atitude proactiva e a sociabilidade do sénior exigem que a alimentação seja encarada como um prazer importante e os alimentos devem ser apreciados com boa qualidade gustativa; deverá sempre ter-se em conta que os regimes alimentares restritivos poderão ter consequências nefastas no estado nutricional do sénior.

Por definição, o sénior fica mais influenciável na maturidade. Daí haver toda a vantagem em apoiá-lo quanto às aldrabices do mercado e às práticas abusivas que podem explorar a fraqueza nas suas decisões de compra. Estas intrujices podem manifestar-se de muitas maneiras: nas compras com ou sem promoções; nas cláusulas dos contratos; nos produtos milagre ligados sobretudo à saúde; nas vendas por telefone, em reunião e nos cartões de férias… os seniores são um alvo privilegiado dos trapaceiros do mercado. Todas as associações que têm seniores devem pensar na sua defesa, explicando-lhes: o que são técnicas de venda e como elas podem manipular a liberdade de escolha; o consumidor deve conhecer os seus direitos nas compras com promoção em saldo, nas vendas com brindes, com redução de preço, etc. (as vendas agressivas sugerem sempre preços mirabolantes, condições únicas e preços imbatíveis); o sénior deve estar alertado de que as intrujices sobre a saúde podem provocar danos irreparáveis, pelo que se deve ter cuidado com os regimes de redução de peso, os alimentos disfarçados de medicamentos e sobretudo os medicamentos comprados na internet.

Há, é verdade, as questões relacionadas com as patologias, por vezes a perda de mobilidade, certas incapacidades. Devemos todos estar conscientes dos porquês do envelhecimento. Um sénior socialmente activo resiste sempre melhor ao isolamento e às obsessões, mesmo quando as limitações são fortes: resiste à perda de visão próxima, à redução de agilidade, ao andar por vezes penoso ou às modificações dos reflexos. O importante é estarmos conscientes do que é o processo do envelhecimento e de como o podemos retardar. Por exemplo, o processo de envelhecimento do sistema nervoso pode começar na meia-idade e manifesta-se por atrofia cerebral.

As associações de doentes e de consumidores, os promotores de saúde, enfim as organizações que estão envolvidas em projectos favoráveis ao envelhecimento activo, têm o dever de apoiar todos aqueles que lhes batem à porta para lhes dar instrumentos para apoio ao envelhecimento positivo: como comunicar com os profissionais de saúde e fazer um uso responsável na toma de medicamentos; saber cuidar do corpo, viver numa casa segura e funcional, dispor de um regime alimentar satisfatório, partilhar as alegrias da vida com os outros.

A solidariedade inter-geracional é uma das garantias para a cidadania de pleno direito, para viver cuidado e a cuidar-se com total dignidade. Com esta solidariedade faremos bem uns aos outros e a sociedade ganhará em termos de desenvolvimento e qualidade de vida: com mais cuidados de saúde e muito menos solidão; com a solicitude e partilha de carinho; com entreajuda e respeito pela memória desses seniores que são bibliotecas vivas.

Enfim, como envelhecer sem uma doença crónica é mais a excepção do que a regra, todo o discurso proactivo em favor dos seniores passa por ajuda-lo a saber gerir a sua própria vida, a preservar as habilidades físicas e mentais necessárias à manutenção de uma vida autónoma. Um sénior que trabalha até tarde, que é educado e que tem a sua curiosidade educada, que é comunicativo e dotado de vida social, está menos sujeito à exclusão e à discriminação social, fica mais aberto a ajudar os outros, permanece receptivo à busca da beleza e ao optimismo.

Beja Santos
Out. 2010

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