quinta-feira, 30 de setembro de 2010

As causas do enfraquecimento da Europa Social

"Social Europe" vs. "liberalism...Image by Cvjetichologue via Flickr

António Campos











Este artigo evidencia as políticas fiscais regressivas que têm vindo a ocorrer nos países da União Europeia dos Quinze (incluindo Espanha), responsáveis pelo enfraquecimento da Europa Social, bem como pela enorme polarização dos rendimentos nestes países.





À primeira vista pareceria que até aos anos que precederam a crise económica e financeira, a Europa Social (isto é, os estados de bem-estar dos países membros da União Europeia) tinham boa saúde. Na realidade, a despesa pública social (como percentagem do PIB) foi aumentando desde os anos noventa. Nos países da UE-15 (o grupo de países mais ricos da UE), a sua média cresceu de 25,4% em 1990, para 27,4% em 1997, para 27,7% em 2003 e para 27,9% em 2005. 


Ora bem, falar de médias é muito enviesado e pode ser desorientador. Podemos afogar-nos num rio que, em média, tem apenas dez centímetros de profundidade. Pode estar seco na sua maior extensão, mas pode ter uma zona de três metros onde as pessoas se podem afogar. Daí que seja importante observar a sua variabilidade em torno da média. Na UE-15, o país que tem uma despesa pública social mais baixa é Espanha (20,9% do PIB em 2005). E a mais elevada é a Suécia (32%). 


A causa deste diferencial é predominantemente política. As direitas, historicamente, foram muito fortes em Espanha (e noutros países do Sul da Europa) e as esquerdas foram-no na Suécia (e nos países do Norte da Europa). É importante que se sublinhe esta explicação porque há uma tentativa por parte de economistas neoliberais de ocultar e diluir esta causa política do subdesenvolvimento social, atribuindo a despesa pública social ao nível de riqueza de um país.


Seguindo um tipo de determinismo económico, postula-se que quanto maior o nível de riqueza de um país, maior é a sua despesa pública social. Esta postura é errónea e é fácil de demonstrá-lo. Os EUA são o país mais rico do mundo e, em contrapartida, são um dos países com uma despesa pública social mais baixa. E Espanha já não é um país pobre. O seu PIB per capita já representa 94% da média da UE-15. E, em contrapartida, a sua despesa pública social per capita não é 94% da média de despesa pública social per capita da UE-15, mas tão só 74%. Se fosse 94%, gastaríamos 66.000 milhões mais no nosso estado de bem-estar do que gastamos agora. É importante que esta situação se conheça, porque existe hoje uma postura muito generalizada, não só entre os partidos conservadores e liberais, mas inclusive na equipa económica do governo Zapatero, que justifica os cortes na despesa pública com o argumento de que, como país, gastamos mais do que os nossos recursos nos permitem. E daí deduzem a necessidade de aplicar medidas de austeridade de despesa pública. Esta interpretação dos nossos males, assumindo que a crise é consequência de que “gastamos mais do que temos”, estendeu-se também em toda a UE e é o novo dogma que justifica os grandes cortes da despesa pública a fim de reduzir o défice e as dívidas públicas. Mas é fácil de demonstrar que este dogma está profundamente errado.


Em Espanha gastamos, repito, 66.000 milhões menos na Espanha social do que deveríamos gastar segundo o nosso nível de desenvolvimento económico. E o facto de não se gastarem resulta de o estado não os recolher. Não é, pois, que Espanha não tenha os recursos. Tem-nos e muitos (66.000 milhões de euros). O que ocorre é que o estado não recolhe estes fundos. Esta é a realidade que, ou bem se desconhece, ou bem se ignora deliberadamente para justificar as políticas de austeridade de despesa pública que se estão a seguir em Espanha.






E aí está a raiz do problema, a enorme regressividade do sistema fiscal que em muitos países da UE-15 foi crescendo desde o início da era neoliberal. Vejamos as componentes desta regressividade, começando pelos impostos [1]. Os ingressos para o estado, por via impositiva, diminuíram na UE-15, passando de representar 39,8% do PIB em 1996 a 39,3% em 2004, descida mais acentuada nos países integrados na união monetária (passando de 38,0% para 34,5%). Nos EUA, por certo, baixaram também, passando de 27,3% para 25,4%, o mesmo que no Japão, onde passaram de 27,3% para 25,4% durante o período 1995-2004.

Mas, além de baixarem os ingressos para o estado (apesar de o nível de riqueza ter aumentado), vemos que a incidência dos rendimentos do capital (muito mais baixa que a dos rendimentos do trabalho) desceu ainda mais. A taxa de incidência dos rendimentos do capital nos países da zona euro passou de representar 17,0% em 1995 para 14,0% em 2003, a maior descida entre o grupo de países da OCDE (o clube de países mais ricos), enquanto os rendimentos do trabalho continuaram a ser taxados a 35%. A taxa de a incidência do consumo manteve-se ao mesmo nível, com um ligeiro aumento de 20,5% em 1995 para 20,8% em 2003. Estes dados mostram que foram os rendimentos do capital os que beneficiaram mais como consequência das políticas fiscais aplicadas durante aquele período. Outro grupo que beneficiou enormemente são os rendimentos superiores, que viram descer a sua taxa de incidência de 51,52% da sua renda para 49,20%. Para entender estes valores, há que saber que cada 0,1% de descida na taxa de incidência representa milhares de milhões de euros que os estados deixam de recolher.


Como se justificam estas políticas tão favoráveis aos rendimentos do capital e aos rendimentos superiores? O discurso neoliberal (presente na maioria dos partidos dirigentes nos países da zona euro) é que o capital e as pessoas de rendimentos superiores (os ricos) são muito móveis e, se os estados não os mimarem, deixarão o país. São parte das classes cosmopolitas que se movem de um país para outro como parte do jet-set. Ora bem, os estados podem intervir para diminuir tal mobilidade. E, se não o fazem, é predominantemente por razões políticas, isto é, não se atrevem a enfrentar-se com interesses fácticos tão importantes como, por exemplo, a banca. Hoje, grande parte dos movimentos do capital financeiro são de tipo especulativo, isto é, enriquecem sem criar riqueza. Trata-se da economia de casino que nos levou à crise que estamos a viver. Daí que se deveria eliminar estas actividades e taxar fortemente esta mobilidade de capitais a curto prazo. A existência dos paraísos fiscais (que existem, não só na Suíça e no Luxemburgo, mas também na Alemanha, nos EUA, na Bélgica e na Irlanda) prejudicam, não só os países onde tais paraísos existem, mas os países dos quais provêm estes capitais. Significam o caso de evasão e corrupção de capitais mais importante do mundo, da zona euro e de Espanha. O facto de que mesmo agora, depois do enorme prejuízo que causaram, os estados não terem intervindo ainda, mostra a natureza política do problema.

Outra medida, além de coordenar as políticas fiscais entre os países da UE, é estabelecer normas de taxação empresarial, abaixo das quais não poderia permitir-se às empresas operar num país. Isso estaria encaminhado a evitar o fenómeno Irlanda, que baseou o seu desenvolvimento dentro da EU em salários e impostos baixos, resultando um estado com escassíssima sensibilidade social e baixa qualidade de vida. Esta estratégia de desenvolvimento, que Espanha também seguiu, conduz a um desenvolvimento caracterizado por enormes, altos e baixos, sem se basear numa riqueza estável e bem repartida (como a dos países nórdicos). 


Requer-se também o desenvolvimento de regulamentos sociais como condição de permanência na União Europeia, garantindo a existência de direitos sociais e laborais (tais como a universalidade de protecção social em todas as suas categorias), bem como um código obrigatório (não voluntário) de conduta das empresas, expandindo o seu critério de lucro e produtividade, considerando lucro não só a rentabilidade para os seus accionistas e gestores, mas também a sua contribuição para a comunidade. Tais regras e direitos devem estabelecer-se a nível da UE, estabelecendo as condições para atingir um pacto social a nível comunitário, o qual requereria uma legislação a nível continental que permitisse convénios colectivos a nível europeu (o que não existe hoje na UE). E deveriam incluir-se impostos a nível comunitário, tais como impostos de protecção ambiental, que serviriam para fins sociais amplamente populares.

Na verdade, não é difícil visualizar as políticas públicas que deveriam praticar-se, tanto a nível da cada estado como a nível de toda a UE e da zona euro. O difícil é que se levem a cabo, e isso como resultado do domínio das forças conservadoras e liberais nos estados membros da UE, bem como no Conselho Europeu, na Comissão Europeia e no Banco Central Europeu. A construção da União Europeia fez-se mediante políticas neoliberais que têm prejudicado o bem-estar das classes populares do continente. Os rendimentos do trabalho como percentagem dos rendimentos nacionais diminuíram na maioria dos países membros da UE [2], durante os anos de construção da UE e da sua zona euro.

Na maioria dos países de tal zona monetária, o aumento notável da produtividade não correspondeu ao conseguinte aumento salarial, tendo sido os rendimentos do capital os que beneficiaram mais com aquele aumento. Entre estas últimos rendimentos, os do capital financeiro atingiram níveis de enorme exuberância, sendo o seu comportamento uma das causas da crise actual. Foi, pois, a enorme polarização dos rendimentos (resultado, em grande parte, das políticas fiscais regressivas) que determinou a problemática existente nestes países. As soluções para esta problemática requererão a reversão daquelas políticas fiscais regressivas, o que exige uma mudança nas relações de poder existentes na UE e nos seus estados membros, com maior poder e influência por parte das classes populares à custa do excessivo poder que hoje têm os grandes grupos financeiros e empresariais e os rendimentos superiores naqueles países. Isso deveria conduzir a mudanças na orientação económica e fiscal de muitos partidos de centro-esquerda e de esquerda (que tradicionalmente representaram as classes populares), que, ao fazer suas as políticas neoliberais, se transformaram durante estes anos em parte do problema, em lugar de parte da solução.

Vicenç Navarro, Set.16.2010
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[1] A maioria dos dados que aqui apresento procedem do livro Global Finance and Social Europe, colecção dirigida por John Grahl e publicada por Edward Elgar. 2009.
[2] Ver o meu artigo Luta de classes na UE, 17/06/2010.

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terça-feira, 28 de setembro de 2010

A pobreza sai muito caro

Mia Couto (Mozambican writer)Image via Wikipedia

António Campos

Cercado por uma espécie de guerra, refém de um sentimento de impotência, escuto tiros a uma centena de metros. Fumo escuro reforça o sentimento de cerco. Esse fumo não escurece apenas o horizonte imediato da minha janela. Escurece o futuro. Estamo-nos suicidando em fumo? Ironia triste: o pneu que foi feito para vencer a estrada está, em chamas, consumindo a estrada. Essa estrada é aquela que nos levaria a uma condição melhor.

E de novo, uma certa orfandade atinge-me. Eu, como todos os cidadãos de Maputo, necessitaríamos de uma palavra de orientação, de um esclarecimento sobre o que se passa e como devo actuar. Não há voz, não rosto de nenhuma autoridade. Ligo rádio, ligo televisão. Estão passando novelas, música, de costas voltadas para a realidade. Alguém virá dizer-nos alguma coisa, diz um dos meus filhos. Ninguém, excepto uma cadeia de televisão, dá conta do que se está passando.

A pobreza sai muito caro. Ser pobre custa muito dinheiro. Os motins da semana passada comprovam este parodoxo. Jovens sem presente agrediram o seu próprio futuro. Os tumultos não tinham uma senha, uma organização, uma palavra de ordem. Apenas a desesperada esperança de poder reverter a decisão de aumento de preços. Sem enquadramento organizativo, os tumultos, rapidamente, foram apropriados pelo oportunismo da violência, do saque, do vandalismo.

Esta luta desesperada é o corolário de uma vida de desespero. Sem sindicatos, sem partidos políticos, a violência usada nos motins vitimiza sobretudo quem já é pobre.

Grave será contentarmo-nos com condenações moralistas e explicações redutores e simplificadoras. A intensidade e a extensão dos tumultos deve obrigar a um repensar de caminhos, sobretudo por parte de quem assume a direcção política do país. Na verdade, os motins não eram legais, mas eram legítimos. Para os que não estavam nas ruas, mesmo para os que condenavam a forma dos protestos, havia razão e fundamento para esta rebelião. Um grupo de trabalhadores que observava, junto comigo, os revoltosos, comentava: são os nossos soldados. E o resto, os excessos, seriam danos colaterais.

Os que não tinham voz diziam agora o que outros pretendiam dizer. Os que mais estão privados de poder fizeram estremecer a cidade, experimentaram a vertigem do poder. Eles não estavam sugerindo alternativas, propostas de solução. Estavam mostrando indignação. Estavam pedindo essa solução a “quem de direito”. Implícito estava que, apesar de tudo, os revoltosos olhavam como legítimas as autoridades de quem esperavam aquilo que chamavam “uma resposta”. Essa resposta não veio. Ou veio em absoluta negação daquilo que seria a expectativa.

Poderia ser outra essa ausência de resposta. Ou tudo o que havia para falar teria que ser dito antes, como sucede com esses casais que querem, num último diálogo, recuperar tudo o que nunca falaram. Um modo de ser pobre é não aprender. É não retirar lições dos acontecimentos.

As presentes manifestações são já um resultado dessa incapacidade.

Para que, mais uma vez, não seja um desacontecimento, um não evento. Porque são muitos os “não eventos” da nossa história recente. Um deles é a chamada “guerra civil”. O próprio nome será, talvez, inadequado. Aceitemos, no entanto, a designação. Pois essa guerra cercou-nos no horizonte e no tempo. Será que hoje retiramos desse drama que durou 16 anos? Não creio. Entre esquecimentos e distorções, o fenómeno da violência que nos paralisou durante década e meia não deixará ensinamentos que produzam outras possibilidades de futuro.

Vivemos de slogans e estereótipos. A figura emblemática dos “bandos armados” esfumou-se num aperto de mão entre compatriotas. Subsiste a ideia feita de que somos um povo ordeiro e pacífico. Como se a violência da chamada guerra civil tivesse sido feita por alienígenas. Algumas desatenções devem ser questionadas. No momento quente do esclarecimento, argumentar que os jovens da cidade devem olhar para os “maravilhosos” avanços nos distritos é deitar gasolina sobre o fogo. O discurso oficial insiste em adjectivar para apelar à auto-estima. Insistir que o nosso povo é “maravilhoso”, que o nosso país é “belo”. Mas todos os povos do mundo são “maravilhosos”, todos os países são “belos”. A luta contra a pobreza absoluta exige um discurso mais rico. Mais que discurso exige um pensamento mais próximo da realidade, mais atento à sensibilidade das pessoas, sobretudo dessas que suportam o peso real da pobreza.

Mia Couto, Set.16.2010
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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A justiça poética de Dennis Brutus

Sign in Durban that states the beach is for wh...Image via Wikipedia
António Campos


Dennis Brutus partiu pedras ao lado de Nelson Mandela quando estavam encarcerados juntos na tristemente célebre prisão da ilha Robben. O seu delito, semelhante ao de Mandela, foi lutar contra a injustiça do racismo, desafiar o regime do apartheid na África do Sul. As armas de Brutus foram as suas palavras: elevadas, fulgurantes e poéticas. Foi banido, foi censurado, foi alvejado. Mas o compromisso e o activismo deste poeta, a sua defesa dos pobres, nunca vacilaram. Brutus morreu durante o sono no princípio do dia 26 de Dezembro, na Cidade do Cabo, aos 85 anos de idade, mas viveu com os olhos bem abertos. A sua vida sintetiza o século XX, e, inclusive até aos seus últimos dias, inspirou, guiou e mobilizou as pessoas na luta pela justiça no século XXI.

Curiosamente, para este delicado poeta e intelectual, foi o rugby que, ainda jovem, lhe revelou a injustiça racial na sua pátria. Brutus recordava-se de ser referido sarcasticamente por um homem branco como um «futuro Springbok».

Os Springboks eram a equipa nacional de rugby, e Brutus sabia que quem não era branco nunca poderia entrar na equipa. «Isso ficou-me gravado até anos mais tarde, quando comecei a questionar a barreira no seu conjunto – a questionar por que é que os negros não podiam entrar na equipa». Este tema aparece no novo filme de Clint Eastwood, Invictus. O Presidente Mandela, representado por Morgan Freeman, apoia os Springboks durante a Taça Mundial de 1995, reconhecendo que até então os negros sempre souberam quem apoiar: qualquer equipa que jogasse contra os Springboks.

No final da década de 1950, Brutus escrevia uma crónica de desportos com o pseudónimo “A. De Bruin”, que em afrikaans significa “um negro”. Brutus escreveu: «A crónica […] era aparentemente sobre resultados desportivos, mas também sobre a política racial e o desporto». Foi banido, uma prática do apartheid que impunha restrições de movimento, de direito de reunião e de publicação, entre outras. Em 1963, ao tentar fugir à custódia policial, foi alvejado. Quase morreu numa rua de Joanesburgo enquanto esperava por uma ambulância especial para negros.

Brutus passou 18 meses na prisão, na mesma secção da ilha Robben que Nelson Mandela, onde escreveu a sua primeira colecção de poemas, Sirens, Knuckles, Boots. O seu poema “Sharpeville” descrevia o massacre de 21 de Março de 1960 no qual a polícia sul-africana abriu fogo e matou 69 civis, um evento que o radicalizou.

«Recordem Sharpeville no dia das balas pelas costas porque encarnou a opressão e a natureza da sociedade mais claramente que nenhuma outra coisa; foi o acontecimento típico».

Depois da prisão, Brutus iniciou a sua vida de refugiado político. Formou o Comité Olímpico Não Racial Sul-africano para incluir os desportos numa campanha mundial de grande envergadura contra o apartheid. Conseguiu que a África do Sul fosse proibida de participar nos Jogos Olímpicos de 1970. Brutus mudou-se para os Estados Unidos, onde permaneceu como professor universitário e líder contra o apartheid, apesar dos esforços do governo de Reagan para impedir que mantivesse a sua condição de refugiado e deportá-lo.

Depois da queda do apartheid e a ascensão ao poder do Congresso Nacional Africano, Brutus manteve-se fiel aos seus princípios. Disse-me: «Quando se privatiza a água, quando se privatiza a electricidade, quando as pessoas são despejadas das suas barracas porque não conseguem pagar o aluguer das barracas, a situação piora. […] O governo sul-africano, liderado pelo ANC […] decidiu adoptar uma solução corporativa».

Continuou: «Saímos do apartheid para um apartheid global. Estamos agora num mundo onde, de facto, a riqueza está concentrada nas mãos de uns quantos; a maioria das pessoas ainda é pobre […] uma sociedade que está desenhada para proteger os ricos e as corporações e que, de facto, está a prejudicar os pobres, aumentando o seu fardo, isto é o inverso do que pensávamos que iria suceder sob um governo do ANC».

Muitos jovens activistas conhecem Dennis Brutus, não pelo seu trabalho contra o apartheid, mas pelo seu activismo a favor da justiça global, sempre presente nas grandes mobilizações de massas contra a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – e, mais recentemente, embora não presente, dando inspiração aos manifestantes que protestavam na cimeira climática da ONU em Copenhaga. No seu 85º aniversário, dias antes de começarem as negociações sobre o clima, disse: «Estamos em graves dificuldades por todo o planeta. Vamos dizer ao mundo: há demasiados lucros, demasiada ganância, demasiado sofrimento dos pobres. […] Os habitantes do planeta devem agir».

Denis Moynihan contribuiu com pesquisa para este artigo. Revisto a partir da versão publicada em Esquerda.

Amy Goodman, Junho.23.2010


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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O determinismo demográfico - ciência ou ideologia?

against determinismImage by moirabot via Flickr

António Campos

Este artigo questiona o determinismo demográfico que assume que a transição demográfica torna o sistema de pensões inviável em Espanha. A ignorância sistemática por parte dos autores promotores do determinismo demográfico das críticas que se fizeram das suas teses, demonstra o carácter ideológico, em lugar de científico, de tais teses.

Em qualquer área de conhecimento científico exige-se que os autores sejam capazes de rebater as teses que questionam as suas próprias teses. Ignorar as críticas, sem lhes responder, é perder credibilidade, pois transformam o projecto científico em mera propaganda política, por muito que se vista de científica. Esta observação aplica-se a grande número de teses catastróficas do sistema de pensões, que baseiam a sua visão de insustentabilidade do sistema de pensões públicas num determinismo demográfico, que foi questionado extensamente. Posto que estes questionamentos são amplamente conhecidos, ignorá-los implica uma violação da integridade que se exige em qualquer projecto científico. Se um investigador continuasse a promover um tratamento médico, apesar da evidência científica existente mostrar que esse tratamento é danoso, seria questionado e as suas credenciais científicas seriam retiradas. Pois o mesmo deve aplicar-se nas análises que continuam a utilizar a evolução demográfica como causa da inviabilidade das pensões. Parece-me muito bem que tais teses continuem a ser escritas e gozem de caixas de ressonância nos meios de comunicação, mas, para que sejam levadas a sério, deveriam responder aos argumentos daqueles que mostraram o erro dos pressupostos nos quais se baseiam tais projecções de insustentabilidade. A resposta a tais trabalhos, mostrando que são erróneos, seria o passo necessário para ganhar a credibilidade científica com que se apresentam, e da qual até agora carecem. Ignorar tais trabalhos, e continuar a repetir as teses catastróficas, transforma as suas teses em mera propaganda ideológica.

Para aqueles leitores interessados no assunto permito-me sugerir-lhes que leiam artigos que questionam os pressupostos das teses do determinismo demográfico, concretamente a necessidade de:

1. Não confundir esperança de vida média num país com a longevidade dos seus cidadãos, confusão que constantemente se faz por parte dos deterministas demográficos. O facto da esperança de vida ter crescido substancialmente em Espanha deve-se primordialmente à descida da mortalidade infantil, mais que ao crescimento de anos de vida dos idosos, o qual foi muito menor que o aumento da esperança de vida média do país [1].

2. A longevidade das pessoas em Espanha varia segundo a sua classe social. Espanha é um dos países com maiores desigualdades sociais na OCDE (o clube de países mais ricos do mundo). Um burguês vive dez anos mais que um trabalhador não qualificado com mais de cinco anos no desemprego. Existe um gradiente de mortalidade segundo a classe social. Daí que atrasar obrigatoriamente a idade de aposentação é profundamente injusto, pois implica que os trabalhadores não qualificados estarão a trabalhar mais dois anos para pagar as pensões de pessoas mais ricas que lhes sobreviverão muitos anos. É injusto, por exemplo, que a mulher da limpeza da Universidade tenha que trabalhar mais dois anos para pagar a minha pensão, quando eu, Catedrático de Universidade, lhe sobreviverei mais oito anos [2].

3. Os autores que propõem atrasar a aposentação mais dois anos pertencem todos eles a uma classe social que na sua maioria desfruta no seu trabalho. Esta não é a situação da maioria da classe trabalhadora neste país.

4. O ponto chave para determinar a viabilidade do sistema de pensões não é – como erroneamente se assume – o número de trabalhadores contribuintes por pensionistas. Este valor não é o valor determinante da viabilidade do sistema. Naqueles sistemas de pensões baseados em contribuições procedentes do mercado de trabalho, o ponto chave é a quantidade de contribuições para o sistema de Segurança Social, que depende mais da produtividade que do número de trabalhadores, bem como do contexto político. Suponha o leitor que há quarenta anos (quando para produzir todo o alimento que a Espanha consumia era preciso 30% da população activa) tivessem havido vozes alarmistas apontando que em quarenta anos não haveria suficientes pessoas a trabalhar no campo para alimentar toda a população espanhola, pois as pessoas estavam a deslocar-se para as cidades. Pois bem, hoje 4% da população activa produz o que há quarenta anos produziam 30% e há, além do mais, um excedente na produção de alimentos. Aplique este símile e substitua alimento por pensões. O incremento da produtividade fará que em quarenta anos, o PIB tenha crescido enormemente (será mais do dobro do actual), com o que haverá mais recursos para pensionistas e não pensionistas que agora, ainda que a percentagem do PIB em pensões públicas passe de 8% para 15% [3]. Na realidade, há quarenta anos, Espanha gastava em pensões apenas 4%. Hoje gasta mais do dobro, 8%, e os não pensionistas têm mais recursos agora que antes.

5. Não há nada escrito na Bíblia, incluindo as Bíblias económicas, que indique que as pensões têm que se basear em contribuições do mercado de trabalho. Em muitos países, como a Dinamarca, procedem dos fundos gerais do Estado. E é muito duvidoso que um programa tão popular como as pensões não possa encontrar fundos para se sustentar.

Não há dúvida que o sistema de pensões deveria ser reformado, dificultando as pré-aposentações excessivas (que beneficiam o empresário, prejudicando o trabalhador), facilitando a integração da mulher no mercado de trabalho, permitindo voluntariamente o atraso da idade de aposentação e outras medidas. Mas, concluir a partir da necessidade destas reformas que o sistema é inviável, devido à transição demográfica, é insustentável em bases científicas. Penso que os catastrofistas não podem continuar a projectar catástrofes sem, ao menos, responder àqueles que questionam os pressupostos nos quais se baseiam as suas teses.



de Vicenç Navarro
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quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Milho transgénico, farsa e violência

Fremont MAiZEImage by ToastyKen via Flickr

António Campos

Em finais de 2009, o governo mexicano autorizou o cultivo experimental de milho transgénico em 12,7 hectares, rompendo uma moratória de mais de 10 anos, a favor das transnacionais Monsanto, DuPont (proprietária da Pioneer Hi-Bred) e Dow. Em 2010, sem ter os resultados da sua suposta experimentação, aceitou outra vintena de solicitações das mesmas transnacionais, às quais se juntou a Syngenta. As novas solicitações para cultivos experimentais de milho transgénico estão em consulta pública, outro eufemismo governamental, já que as opiniões críticas são ignoradas.

Se lhe parece que 12,7 hectares das solicitações aprovadas em 2009 não é muito, imagine um metro quadrado e pense que são mais de 120 mil metros quadrados, em apertadas filas de milhares de plantas manipuladas geneticamente, cada uma das quais emite pólen suficiente para contaminar muitas mais. As novas solicitações pretendem ocupar mais de mil hectares, ou seja, mais de 10 milhões de metros quadrados.

Ao dar trâmite a estas novas solicitações, o governo evidenciou que não julga necessário esperar os resultados dos mal chamados “experimentos”, como faria qualquer instituição séria, porque de qualquer modo não se trata de experimentar: os resultados mostrarão o que eles tiverem decidido previamente, uma vez que são apenas uma formalidade para legalizar as plantações comerciais das empresas. Cedo veremos um show mediático dizendo que comprovaram que «o milho transgénico produz mais, as pragas não sobrevivem, e nada foi contaminado». O que vai contra a evidência que existe da produção real, segundo estatísticas oficiais sobre dezenas de milhares de hectares e 13 anos de cultivos comerciais nos Estados Unidos, que mostram que 75-80% do aumento de produção de milho nesse país se deveu a enfoques agronómicos não transgénicos [1]. Plantar transgénicos não aumenta a produção, antes a detém. A semente é até 35 por cento mais cara e, estando patenteada, a contaminação torna-se num delito para as vítimas. Também está amplamente demonstrado que o milho transgénico contamina inexoravelmente outras variedades. Nos Estados Unidos, a contaminação difundiu-se de tal maneira por todo o país, que até se encontrou nos pacotes de sementes etiquetados como não transgénicos.

A razão pela qual os Estados Unidos e uns poucos países os plantam (em mais de 170 países não estão autorizados) não é que os transgénicos ofereçam algo melhor, senão que a Monsanto e algumas das outras cinco transnacionais que monopolizam as sementes, controlam de tal modo o mercado (e/ou os governos), que os agricultores não têm escolha.

Procuram que tudo isto se replique no México. Mas aqui a contaminação transgénica do milho implica muitas outras questões, ainda mais graves. O México é o centro de origem do milho e o cultivo está no centro das economias e da autonomia das culturas milenárias que o criaram. O milho integra a dieta quotidiana da grande maioria da população, urbana e rural, pelo que os impactos sobre a saúde se multiplicam como em nenhum outro lugar. A vasta maioria da população do país, desde artistas e intelectuais a cientistas e camponeses, opõe-se à sua liberalização. Os argumentos para isso são numerosos, diversos e sólidos.

Por outro lado, faça você uma busca electrónica para ver quem defende o cultivo de milho transgénico em México. Todos, começando por Agrobio México, fachada das multinacionais de transgénicos, têm vinculação directa ou indirecta com essas empresas. Todos recebem ou receberam dinheiro e favores destas, sejam académicos, directores de organizações de agricultura industrial, funcionários ou assessores que estão na maquinaria da bio(in)segurança no México, incluído o próprio secretário executivo da comissão de bio-segurança (Cibiogem).

O cultivo de milho transgénico no México é uma imposição do governo, contra os interesses do país e a favor de umas poucas multinacionais. Nem sequer cumprem as leis que eles mesmos delinearam, nem esperam pelo arranque da farsa de “resultados positivos” dos seus “experimentos”. Tentam que as pessoas do campo e da cidade se acostumem também a esta forma de violência, que pensem que não há nada a fazer.

Muito pelo contrário, a Rede em Defesa do Milho, integrada por centenas de comunidades indígenas e camponesas, em conjunto com a Via Camponesa e a Assembleia Nacional de Afectados Ambientais denunciaram em Março passado esta farsa, assentaram que o milho transgénico na Mesoamérica é um crime contra a humanidade, que as transnacionais e o governo querem pisar 10 mil anos de história colectiva e que o seu objectivo é roubar-nos o futuro a todos e a todas. Estão a construir um caso colectivo para denunciar este crime em tribunais internacionais, mas sobretudo, continuarão a praticar a defesa territorial do milho, a partir das assembleias, das comunidades e das organizações, informando sobre os riscos, conservando e trocando as suas sementes, não deixando plantar milho de programas de governo. A violência imposta existe e cresce, mas também a experiência de mais de 500 anos de resistência.

Sílvia Ribeiro - Jul 9.2010

[1] Failure to Yield, Union for Concerned Scientists, 2009.

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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

As políticas sociais de velhice

Sonia, you're gonna have to stop singing so lo...Image by Ed Yourdon via Flickr

António Campos

Por políticas de velhice entende-se o conjunto das intervenções públicas, ou  acções colectivas, que estruturam, de forma explícita ou implícita, as relações entre a velhice e a sociedade. Uma análise aprofundada das políticas permite equacionar em que circunstâncias e segundo que processos o problema da velhice se inscreveu nas preocupações dos políticos e é efectivamente assumida pelo Estado. (Este é, neste caso apenas, uma das instâncias institucionais, provavelmente a principal, a quem é socialmente confiado o encargo dos idosos). Que grupos sociais e que instituições se movimentaram, baseados em que princípios, que políticas se constituíram em torno deste problema? O que ou quem representam as orientações das políticas sociais? Apenas a capacidade de o Estado agir de forma autónoma ou respostas a jogos de força e tensões sociais? Como se estabelecem as interacções entre o Estado e a sociedade?

Anne-Marie Guillemard estudou este processo na sociedade francesa. Procurou evidenciar o sentido oculto das orientações públicas das políticas sociais de velhice através da reconstituição das relações sociais subjacentes às políticas, dos usos sociais que delas se foram fazendo e dos seus significados em geral. Deste procedimento a autora identificou duas grandes tendências que classificou em duas concepções de velhice: uma velhice invisível e uma velhice identificada.

A velhice invisível, sem forma definida, com contornos contrastados, característica de uma sociedade em que a condição de velho era função do património familiar é típica do século XIX e início do século xx. E invisível na medida em que a solidariedade para com os idosos é praticamente uma solidariedade familiar, privada, remetida para o interior do espaço doméstico. Na ausência desta, a velhice desprotegida era atirada para o espaço público, identificada com a mendicidade e recebia então algum consolo das instituições de caridade.

Quando socialmente se começou a constituir a ideia de uma etapa da vida que é comummente vivida e onde a velhice está associada a uma reforma, a autora designou-a por velhice identificada. Ao contrário da anterior, aqui encontramos uma definição homogénea de velhice. Com os sistemas de reforma e a sua gradual generalização a segurança na velhice deixa de ser um atributo da propriedade, isto é, a velhice segura era a que assentava no conforto material do proprietário segurança essa que é gradualmente mediatizada pelo acesso ao trabalho remunerado e à posição social.

Segundo ainda Anne-Marie Guillemard, as intervenções do Estado nas relações entre a velhice e a sociedade podem ser reconstituídas, no caso da sociedade francesa, a partir de três eixos políticos considerados essenciais na estruturação do debate sobre a gestão da velhice. A ideia de base é que o modo de gestão pública da velhice reflecte, em cada momento, a forma de articulação entre a ordem do Estado e a ordem das relações sociais.

O primeiro eixo de intervenções desenrolou-se em torno da velhice como direito social à reforma. As várias decisões políticas que deram origem à formação da Segurança Social, do desenvolvimento dos regimes complementares e as alterações sucessivas aos regimes gerais, são o resultado de conflitos e contradições levados a cabo pelos vários intervenientes dos processos ao longo de um século.

O segundo processa-se em tomo da ideia de velhice, entendida como modo de vida específico, e os conflitos desenvolvem-se entre os vários intervenientes sobre as formas possíveis de alojamento e os modos de cuidar dos idosos. Neste caso os protagonistas não são as instituições sindicais e o patronato industrial, como no caso anterior, onde o Estado tem um pouco o papel de árbitro, mas entre a administração pública e a sociedade civil. O resultado, ou seja, as políticas de gestão da velhice reflectem o estado das relações de forças, a capacidade de autonomia do Estado na tomada das decisões e o nível de penetração do Estado por elementos dos grupos sociais em confronto.

O terceiro e último enfoque recai sobre o nível e o modo de participação  
dos idosos no modo de produção. No essencial podemos afirmar que de modo algum a acção do Estado pode ser entendida como um processo monolítico, mas antes como pluralista e necessitando sempre do recurso, para o seu entendimento, a uma causalidade múltipla. No que respeita às políticas de velhice na sociedade francesa, as intervenções do Estado reflectem mais os interesses do trabalho ou mais os interesses dos detentores do capital económico ou ainda a capacidade de 
acção autónoma de um organismo e da sua tecnocracia, consoante os períodos e as conjunturas político-sociais…


Para esta autora há como que uma alteração no significado de velhice provocado, em primeiro lugar, por mecanismos económicos de resolução do problema do desemprego e que atiram precocemente para a reforma activos com o estatuto de velho. Em segundo lugar, por uma desestabilização no consenso em torno das idades e dos tempos sociais, base da noção de reforma e que têm sofrido grandes alterações, quer com os avanços demográficos (que põem em dúvida a pertinência da divisão das idades e que fazem de um sexagenário de hoje diferente do de há umas décadas atrás), quer com a maior difusão das pré-reformas.

Face a uma certa imprecisão que parece existir no significado social de velhice e ao comprometimento das políticas sociais de protecção no âmbito da crise do Estado-Providência, têm sido desencadeados debates e discussões de ideias de modo a encontrar novas formas de articulação entre sociedade e Estado ou entre ela e outras instâncias susceptíveis de criarem novas formas de acção e resolução dos problemas(…).

Ana Alexandre Fernandes, Velhice e Sociedade (adaptado)
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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O holocausto cigano, ontem e hoje

Memorial at TreblinkaImage via Wikipedia

António Campos

Em 1496: auge do “pensamento humanista”. Os povos rom (ciganos) da Alemanha são declarados «traidores aos países cristãos, espiões a soldo dos turcos, portadores da peste, bruxos, bandidos e raptores de crianças».

1710: século das “luzes e da razão”. Um édito ordena que os ciganos adultos de Praga sejam enforcados sem julgamento. Os jovens e as mulheres são mutilados. Na Boémia, é-lhes cortada a orelha esquerda. Na Morávia, a orelha direita.

1899: clímax da “modernidade e do progresso”. A polícia da Baviera cria a Secção Especial de assuntos ciganos. Em 1929, a secção foi elevada à categoria de Central Nacional, e transladada para Munich. Em 1937, instala-se em Berlim. Quatro anos depois, meio milhão de ciganos morrem nos campos de concentração da Europa Central e do Leste.

2010: fim das “meta-explicações” e das “ideologias” (sic). Na Itália (onde nasceu a razão de Estado) e na França (sede mundial da tagarelice intelectual), os gabinetes em pleno de ambos os governos (com forte apoio popular, ou seja, “democráticos”) ficham e deportam milhares de ciganos para a Bulgária e a Roménia.

A tragédia dos rom começou nos Balcãs. Que drama europeu não começou nos Balcãs? Em meados do século XV, o príncipe Vlad Dracul (ou Demónio, um dos heróis nacionais na resistência contra os turcos) regressou de uma batalha livrada na Bulgária com 12 mil escravos ciganos. Por certo… não era cigano o misterioso cocheiro do conde Drácula?

O doutor Hans Globke, um dos redactores das leis de Nuremberg sobre a classificação da população alemã (1935), declarou: os ciganos são de sangue estrangeiro. Estrangeiros de onde? Sem poder negar que cientificamente eram de origem ariana, o professor Hans F. Guenther classificou-os numa categoria aparte:Rassengemische (mistura indeterminada).

Na sua tese de doutoramento, Eva Justin (assistente do doutor Robert Ritter, da secção de investigações raciais do Ministério da Saúde alemão), afirmava que o sangue cigano era «bastante perigoso para a pureza da raça alemã». E um tal doutor Portschy enviou um memorando a Hitler sugerindo-lhe que os submetesse a trabalhos forçados e a esterilização em massa, porque punham em perigo «o sangue puro do campesinato alemão».

Qualificados de “criminosos inveterados”, os ciganos começaram a ser detidos em massa, e a partir de 1938 foram internados em blocos especiais nos campos de Buchenwald, Mauthausen, Gusen, Dautmergen, Natzweiler e Flossenburg.

Num campo da sua propriedade de Ravensbruck, Heinrich Himmler, chefe da Gestapo (SS), criou um espaço para sacrificar as mulheres ciganas que eram submetidas a experiências médicas. Foram esterilizadas 120 meninas zíngaras. No hospital de Dusseldorf-Lierenfeld foram esterilizadas ciganas casadas com não ciganos.

Milhares de ciganos mais foram deportados da Bélgica, da Holanda e da França para o campo polaco de Auschwitz. Nas suas Memórias, Rudolf Hoess (comandante de Auschwitz) conta que entre os deportados ciganos havia velhos quase centenários, mulheres grávidas e grande número de crianças.

No gueto de Lodz (Polónia), as condições resultaram tão extremas, que nenhum dos 5 mil ciganos sobreviveu. Mais trinta mil morreram nos campos polacos de Belzec, Treblinka, Sobibor e Maidaneck.

Durante a invasão alemã à União Soviética (Ucrânia, Crimeia e os países bálticos) os nazis fuzilaram em Simvirpol (Ucrânia) 800 homens, mulheres e crianças na noite de Natal de 1941. Na Jugoslávia, eram de igual forma executados ciganos e judeus no bosque de Jajnice. Os camponeses recordam ainda os gritos das crianças ciganas levadas para os locais de execução.
Segundo consta nos arquivos dos Einsatzgruppen (patrulhas móveis de extermínio do exército alemão), terão sido assassinados 300 mil ciganos na URSS, e 28 mil na Jugoslávia. O historiador austríaco Raoul Hilberg estima que antes da guerra viviam na Alemanha 34 mil ciganos. Ignora-se o número de sobreviventes.

Nos campos de extermínio, só o amor dos ciganos pela música foi às vezes um consolo. Em Auschwitz, famintos e cheios de piolhos, juntavam-se para tocar, e alentavam as crianças a dançar. Mas também era legendária a coragem dos guerrilheiros ciganos que militavam na resistência polaca, na região de Nieswiez.

«Também eu tinha
uma grande família
foi assassinada pela Legião Negra
homens e mulheres foram esquartejados
entre eles também crianças pequenas»
[versos do hino rom, Gelem, gelem (Andei, andei)].

As exigências de assimilação, expulsão ou eliminação (não necessariamente por esta ordem) justificariam o apego dos povos rom pelos talismãs. Os ciganos portam três nomes: um para os documentos de identidade do país onde vivem; outro para a comunidade; e um terceiro que a mãe sussurra durante meses ao ouvido do recém-nascido.
Esse nome, secreto, servirá como talismã para o proteger contra todo o mal.

Set3.2010

de José Steinsleger
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