1 - A criança, cont.
É assim que entramos pelas problemáticas das crianças. Os Códigos são
espartanos na sua definição. A pessoa que falava no Seminário parece ter razão:
a criança é um subentendido. A frase é minha e com amabilidade foi usada,
devidamente citada, na exposição referida. Não consigo não repetir: a criança é
um subentendido, um subordinado como denominei nas Actas do II Colóquio sobre a
Investigação e Ensino das Antropologia em Portugal[8]. A minha teima tem sido sempre a
ignorância que o adulto atribui à criança, mas, ao mesmo tempo, como esta
criança sabe defender-se da ignorância que o adulto lhe
oferece. Ignorância que não é apenas o facto de ser uma entidade despercebida,
o que vive dentro de regras e horários que afastam as duas gerações. Se retorno
à minha comprida citação, posso apreciar que a cultura do saber universal
entrega aos mais novos um papel sem representação dentro do grupo: eis porque
os autores citados dizem que se deve “talhar”, “construir”, um lugar dentro da
sua cultura, porque um dia a cultura lhe dará o seu lugar social conforme a
aprendizagem que tenha feito do saber, ou, como diz o começo do parágrafo 2, o
indivíduo elabora a sua experiência de entre os materiais fornecidos pela cultura.
É o caso que tenho observado entre as crianças Picunche da Villa de
Pencahue, Província de Tralca, Chile e analisado em 1998 e 2000[9]. Toda criança tem como obrigação trabalhar
a terra, tomar conta dos animais, ensinar aos mais novos a usar a tecnologia
para não se ferirem, satisfazer a libido dos adultos da casa ou visitantes sem
se queixar – política que faz parte do comportamento ritual de crescimento dos
pequenos e das pequenas. Normalmente, pequenas reservadas para o pai, enquanto
os “niños”, para os irmãos mais velhos, os irmãos dos pais,
etc. Comportamento a ser reproduzido, como fui capaz de observar ao longo de
mais de 40 anos, entre grupos diferentes de Picunche de sítios
geográficos distantes do Chile. Criança que não tem adulto, é criança mal
criada, uma vergonha social, desprezada, não querida, que acaba por procurar um
homem na casa dos Homens que para este propósito, existem. Ou, durante certos
anos da minha pesquisa, na Casa da Igreja Romana, com o Padre que acabou por
fugir com um deles. Como relata Maurice Godelier no seu texto sobre La Production des Grands Hommes na Melanésia, em 1981[10]. Formas rituais de unir em relações
reprodutivas os seres humanos no futuro, na idade madura. Esta forma de relação
cria uma associação entre quem bebe esperma do outro ou recebe esperma por fellatio e as relações reprodutivas com a mulher mais
próxima de quem dá e virá a ser a mãe dos seus filhos – irmã, filha de irmão,
parente dentro do grupo clãnico no caso dos Baruya da Nova Guiné ou parente não
consanguíneo directo em relação de ascendência – descendência, como entre os Picunche, Huilliche,Aimara, outros.
No entanto, esta forma de entender as relações deve passar antes pelas
definições de idade e os conceitos que as pessoas têm ou lhe são atribuídas
pelo seu grupo. Se uma introdução à análise das formas culturais de organizar
as emoções já significa uma classificação, é preciso entender a classificação
dos adultos perante as crianças, ou das crianças. Pensa-se que os mais novos
não entendem, pode dizer-se tudo o que se quiser em frente deles por, ou já
saberem tudo, ou ficarem com o seu “saber proscrito”, como diz Alice Miller[11]. Na sua obra, Miller analisa o saber
dos mais novos em diferentes idades, como tinham Feito Freud, Klein, Bion,
entre outros e vamos ver mais à frente. No seu livro de 1977[12], a autora – polaca de nascimento,
refugiada na Suíça, terapeuta da Infância o Pedopsicóloga estuda a infelicidade
da vida infantil dos pais de crianças que ela analisa mais tarde. Estuda
especialmente o caso das mães a sofrerem todo o tipo de violência doméstica,
como a vida a três do pai – a mãe da criança, a sua amiga por turnos e os comentários
que deve ouvir por parte da mulher que se sente abandonado e mora, no entanto,
na denominada casa familiar. O começo do texto é dramático na nossa cultura: a
mãe e o pai não estão ajudar a “talhar” o lugar social na cultura do mais novo,
até o título do primeiro Capítulo define uma relação invertida: é o filho bem
dotado que deve ouvir a mãe nos seus prantos, angústias e depressões. Ora,
esses três sentimentos, como Klein diz no seu texto Inveja e
Gratidão[13], fazem parte da defesa dos pequenos
perante esse falar descontrolado de um adulto cuja epistemologia não entende,
ou não são mutuamente entendidas. O título de Miller é El drama del niño dotado y como nos hicimos terapeutas,
para estudar em 50 páginas a vida de uma infância reprimida que a criança deve
fazer falando de tudo, excepto da verdade e viver de ilusões do que não existe
e não é: esse lar calmo, sereno, estudado, sabido, fiel. É o que, ao longo do
texto, denomina ilusões de infância, a danificar a vida adulta. Como aconteceu
com esses pais, rebentos de pais desleais, dotados com a capacidade de ouvir,
para passar a ser o próximo mais novo a ouvir. Determinados pela história dos
pais com os seus avós, a infância foge da realidade e esconde a falta de amor
na solidão e no abandono infantil, na leitura, no encerramento nos seus
aposentos, que passam a ser dele, com a grande proibição de aí entrar todo e qualquer maior que traga as suas tristezas ante uma
mente capaz de entender o mundo, excluindo a sua família. Sentimentos
materializados em actividades que fazem dele uma criança dotada. “La represión del sufrimiento infantil no solo determina la vida
del individuo, sino también los tabúes de la sociedad”[14]. A solidão e o abandono infantil são
motivos de profundo transtorno das pessoas dotadas: nascem da ausência do
prazer e do carinho na infância. Alice Miller apenas estudara vida de
Sakespeare, Joan Crawford, Charles Chaplin, Mozart, Beethoven e Einstein, para
sabermos a base da sua genialidade. Ou Sartre, Bouvoir, Bourdieu, Godelier…a
falta de infâncias douradas….Típico do caso de Maurice Godelier. A segunda
parte do título desta sua primeira grande obra define a ilusão do amor e a
ilusão de ser pai…
Mas, e a criança, como Freud, Klein, Dolto, analisam? Não há razão da parte
delas para essa infelicidade? Para a infelicidade que não conhecemos, que não
sabemos por falta de observação e de aprendizagem especializada? Mas, que elas
no seu agir, palavras e comportamentos individuais e em grupo, nos ensinam
quase sem palavras? Porque não há apenas o silêncio do saber proscrito e a
infelicidade adulta do pequeno dotado. Há também uma realidade que nasce da
própria realidade, enquanto a criança, cuja idade muda e situação social é
“retalhada”, o ter uma percepção do real, que Wilfred Bion denominaria entender
que há um infinito ao qual pertencemos, como seres finitos que somos e que essa
finitude deve entender a relação para não entrar na omnipotência que define
parte psicótica do nosso ser[15]. Essa criança passa por diferentes
estádios enquanto repara que a base da sua vida – a alimentação –, vem de um
corpo estranho[16].
Hoje em dia sabemos que a relação adulta/criança começa bem antes do
nascimento da mesma, como tinha já indicado na noção anterior ao comentar
textos de Eduardo Sá. O facto de recentemente se ter descoberto do papel que
joga o líquido amniótico entre o corpo da mãe e o mundo exterior – um ouvido
que amplifica o que acontece fora do ventre
materno, faz com que os sons passem a ser naturais, costumeiros, ou
desagradáveis e pouco simpáticos. Ou se ouve Mozart e se fica habituado à
melodia calmante, ou podem ouvir-se debates e más palavras. Relações simpáticas ou antipáticas, estudadas pelos
nossos analistas e a sua influência no futuro adulto. Não esqueço o bebé que
chorava ao ser amamentado: faltava-lhe a viola com Granados a ser tocado,
enquanto a mãe brincava com a viola no colo[17]. A análise da função do líquido
amniótico, é já antiga, faz mais de 50 anos que médicos, pediatras e
terapeutas, procuram uma relação com a capacidade de autonomia da criança ou
com a capacidade de comandar os outros, que vários
autores analisam, a ditadura da Infância. Anos de estudo e o saber vai-se
acumulando, até chegarmos hoje em dia à procura da genética do genoma humano.
“O córtex é soberano e, ao mesmo tempo, deixa-se suplantar docilmente pelo reptiliano.
O carácter não se sente ameaçado e por isso cede, derrete-se docemente,
permitindo que o cerne fique exposto, pulsante, vibrante. “É a necessidade
“libertar-se” da actividade mental, com o intuito de reencontrar a unidade
psicossomática”, como diz Winnicott”[18].(…)
Raul Iturra
Julho 2011
Aventar