sexta-feira, 25 de julho de 2014

Fracasso da União Europeia na Palestina






«Fracasso da União Europeia na Palestina

(Arquivo: Novembro 2013)

Depois do previsível fracasso das chamadas negociações «de paz», que há muito se assemelham a um teatro de sombras, Israel, que nunca parou a colonização, está actualmente a bombardear Gaza, uma das zonas mais densamente povoadas do planeta. Tal como em 2009. Benjamin Netanyahu bem pode actuar fora de toda a legalidade internacional. Ainda a 9 de Julho recebeu o apoio do governo francês, o que vem rematar o fracasso da União Europeia na Palestina.»

«Protestos contra a ocupação sem convicção

 Fracasso da União Europeia na Palestina

Para lá dos discursos de conveniência, prossegue a cooperação com Israel como se a ocupação não existisse. É certo que a União Europeia decidiu finalmente adoptar medidas de retaliação contra a colonização, mas fá-lo de forma tão tímida que a torna incapaz de impor uma paz duradoura na região.»

Vinte anos depois dos Acordos de Oslo, a União Europeia acaba de ultrapassar uma primeira etapa para tornar credível a sua posição oficial a favor de um Estado palestiniano «independente, democrático, contínuo e viável». Com efeito, uma directiva publicada em Julho de 2013 torna inelegível para os financiamentos europeus, a partir de 1 de Janeiro de 2014, toda e qualquer entidade israelita – empresa, universidade, laboratório de investigação, associação – situada para lá das fronteiras de 1967 e que exerça actividade num colonato da Cisjordânia ou em Jerusalém Oriental.

Isto deverá pôr fim ao apoio a empresas como a Ahava, que explora lamas e sais minerais do mar Morto, mar ao qual os industriais palestinianos continuam a ser impedidos de ter acesso; ou ainda a outras como a Israeli Antiquities Authority, através da qual as autoridades israelitas exercem um quasi-monopólio da regulamentação, conservação e apresentação da actividade arqueológica na Palestina.

Uma decisão como esta era ainda mais esperada porque a União nunca conseguiu, ou nunca quis, aplicar as declarações e resoluções acumuladas desde Dezembro de 2009 que instavam o governo israelita a «acabar imediatamente com todas as actividades de implantação, em Jerusalém Oriental e no resto da Cisjordânia, incluindo a extensão natural dos colonatos, e a desmantelar todos os colonatos de povoamento selvagens instalados desde Março de 210» [1]. Até hoje, apesar das constatadas violações das resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU) e das Convenções de Genebra, apesar do parecer consultivo do Tribunal Internacional de Justiça sobre o Muro de SeparaçãoEm 2004, o Tribunal Internacional de Justiça lavrou uma sentença declarando o traçado deste Muro ilegal aos olhos do direito internacional. [2], não foi accionada qualquer sanção.

No entanto é urgente fazê-lo, porque a política do facto consumado continua a destruir lentamente, dia após dia, os territórios palestinianos, hipotecando a solução assente em dois Estados. A Cisjordânia já não é mais do que um arquipélago de pequenas ilhas urbanas, devido ao Muro de Separação (cujo traçado anexa, de facto, perto de 10% do território palestiniano) e à manutenção de 60% da sua superfície sob o controlo total de Israel – a famosa «zona C» [3]. Nesta estão já instalados 350 mil colonos, em 135 colonatos, para 180 mil palestinianos residentes. Além disso, o Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (Office for the Coordination of Humanitarian Affairs, OCHA) tem mostrado preocupação com o aumento da violência perpetrada pelos colonos, com o bloqueio das licenças de construção palestinianas pela administração civil israelita encarregada dos territórios e, por fim com as demolições sistemáticas de edifícios erigidos «sem autorização».

Pressões israelitas e americanas

Estas demolições não poupam os projectos financiados pela União Europeia, que por vezes pagam a reconstrução de infra-estruturas destruídas pelo exército israelita. É o caso, por exemplo, do porto e do aeroporto de Gaza, mas também dos edifícios administrativos e de segurança da Autoridade Palestiniana – em particular em Naplus e em Jenine, onde a União gastou 30 milhões de euros na reconstrução de duas muqatas, que deve ficar terminada no início de 2014 –, ou ainda das instalações de base em meio rural. Mesmo os equipamentos móveis para uso humanitário (tendas, abrigos, latrinas…) vêem-se regularmente pilhados pelo exército ou pelo colonos, sem que alguma vez tenha sido apresentado qualquer pedido de indemnização. Só o Gabinete Humanitário da Comissão Europeia (European Commission Humanitarian Aid Office, ECHO) pediu, por escrito, em 2013, compensações financeiras. O pedido foi indeferido, de forma bastante seca, com o pretexto de que as estruturas não haviam sido construídas em coordenação com as autoridades israelitas.

Os incidentes, que implicam inclusivamente diplomatas europeus, são frequentes, mas a maior parte das vezes são abafados por embaixadas desejosas de não levantar ondas. O apoio ao reforço institucional da Autoridade Palestiniana – leitmotiv dos investidores que apostam no desenvolvimento económico, na falta de uma solução política – foi mantido sem pestanejar. Mas, com o passar do tempo, ele foi transformado numa transfusão que permite manter à tona a Autoridade, cujos funcionários são, em parte, pagos pela União, à razão de 150 milhões de euros por ano.

Os recursos hídricos sempre foram uma questão da maior importância. Ora, a sua partilha manteve-se muito desfavorável aos palestinianos, tributários de um Joint Water Council que devia favorecer a co-decisão entre as duas partes mas que é utilizado pela parte israelita para bloquear a maioria dos projectos palestinianos relativos ao aquífero. Os palestinianos só têm acesso a 20% dos recursos da Cisjordânia, ficando os israelitas com 80% [4]; consomem, em média, quatro vezes menos água por dia e por pessoa. A «comunidade internacional», União Europeia incluída, não parece incomodada por financiar projectos de tratamento das águas cujo investimento e custos operacionais são mais dispendiosos devido às restrições impostas pelo ocupante.

Em Jerusalém, as autoridades israelitas expropriaram mais de um terço da parte oriental da cidade, imediatamente declarada «território do Estado». Em 2013, contam-se 250 mil colonos estabelecidos nos bairros palestinianos, seja na cidade velha e nas bacias históricas, seja nos vastos aglomerados urbanos dispostos em círculos à volta da cidade. Mesmo a cultura, a história e o património são áreas estreitamente controladas pelas autoridades israelitas: retenção das licenças para exercer o ofício de guia turístico, recuperação das obras e dos manuscritos, controlo das escavações arqueológicas… Segundo o mais recente relatório dos chefes de missão diplomática europeus colocados em Jerusalém, isto parece resultar «de um esforço concertado que visa usar a arqueologia para reforçar as pretensões a uma continuidade histórica judaica em Jerusalém, e assim criar uma justificação para o seu estabelecimento enquanto capital eterna e indivisível de Israel» [5].

Apesar das conclusões inequívocas deste relatório, transmitidas a todas as capitais europeias, a União teve muitas dificuldades em impor qualquer medida às autoridades israelitas, a começar pela reabertura das instituições oficiais em Jerusalém Oriental, desde logo a Casa do Oriente – sede da Organização de Libertação da Palestina (OLP) em Jerusalém até 2010 – e a Câmara do Comércio Palestiniana.

Em 2010, Israel fechou todos os pontos de passagem para a Faixa de Gaza, com excepção dos de Erez (de acesso restrito) e de Kerem Shalom, única entrada autorizada para as importações de certas mercadorias, para grande proveito do Hamas. As exportações continuam, com apenas algumas excepções, a estar proibidas. Ao longo de toda a Faixa de Gaza, que é já um dos locais mais densamente povoados do mundo, com perto de 2 milhões de pessoas em quatrocentos quilómetros quadrados (4500 habitantes por quilometro quadrado), as autoridades israelitas impuseram, além disso, uma zona-tampão (buffer zone) de cem a quinhentos metros de largura no interior do Muro de Segurança, impedindo doravante o acesso da população a 17% do território, ou seja, a perto de um terço da sua superfície cultivável. Este tipo de restrição existe também para a fachada marítima, uma vez que o limite de pesca – inicialmente estabelecido em 20 milhas náuticas pelos Acordos de Oslo – está hoje fixado entre 3 e 6 milhas náuticas, de acordo com diferentes períodos [6]. A resposta da União traduziu-se em 15 milhões de euros suplementares para ampliar as infra-estruturas fronteiriças no posto de passagem de Kerem Shalom, isto é, num investimento na infra-estrutura de segurança israelita, em vez de conseguir um levantamento do bloqueio que, no entanto, oficialmente reclama.

Além disso, a sorte dos refugiados palestinianos deteriorou-se ainda mais. Expulsos das suas aldeias aquando das guerras de 1948 e 1967, são cerca de cinco milhões os registados pelas Nações Unidas. Um terço deles vive ainda nos campos «provisórios» em Gaza, na Cisjordânia, na Jordânia, no Líbano e na Síria; 3,5 milhões dependem da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees, UNRWA) para os serviços essenciais em matéria de saúde ou de educação. Esta situação, que custa à União Europeia cerca de 300 milhões de euros por ano sob a forma de apoio financeiro à UNRWA, é ainda mais agravada pelo afluxo actual de refugiados sírios e pela instabilidade dos países da região.

O statu quo no Médio Oriente, que de statu quo só tem o nome, ilustra a incapacidade da União Europeia para impor as condições de uma paz duradoura na região. No entanto, ela dispõe de todos os meios para o fazer [7].

Em primeiro lugar, a União podia assumir este importante passo que foi dado com a publicação da sua directiva, em vez de tentar atenuar o seu alcance, e recusar ceder às pressões exercidas, desde então, pelas autoridades israelitas – que proibiram aos seus representantes o acesso a Gaza – e americanas. Além disso, com um volume de trocas de perto de 30 mil milhões de euros por ano, a Europa representa o principal parceiro comercial de Israel, e um quarto das suas exportações. A União poderia, assim, ameaçar Telavive com retaliações no quadro do Acordo de Associação assinado em 2000, congelar os acordos específicos em vigor ou em curso de negociação (Israel continua a ser o principal beneficiário dos Programas Mediterrânicos) e suspender todas as negociações com vista a reforçar o Acordo de Associação.

Mais ainda, a União Europeia podia deixar de importar produtos fabricados ou montados nos colonatos israelitas da Cisjordânia. Em 2012, um colectivo de vinte e duas organizações não governamentais (ONG) calculou que estas importações ascendem a 230 milhões de euros, ou seja, quinze vezes mais do que as importações europeias de produtos palestinianos [8]. Não dependendo de financiamentos europeus directos, estas exportações não são, com efeito, abrangidas pela recente directiva. E, não tendo uma etiquetagem precisa, estes produtos «made in Israel», de facto originários dos colonatos, beneficiam de uma isenção de taxa… Está aliás em curso, em treze Estados, uma iniciativa relativa à etiquetagem, por preocupação de transparência em relação ao consumidor europeu. Mas alguns desses Estados, como a Irlanda, lamentam que esta iniciativa não chegue ao ponto de proibir pura e simples estes produtos no mercado europeu.

Por fim, a União podia actuar no comércio de armas com Israel, que continua a crescer apesar do código de conduta europeu que proíbe todo e qualquer comércio de equipamento militar com autoridades «que recorram à repressão interna, à agressão internacional ou contribuam para a instabilidade regional». Esta importação de equipamentos, o investimento na investigação (em parte graças a subvenções europeias) e as recentes e mortíferas operações militares em Gaza – verdadeiro laboratório para as tecnologias de ponta em matéria de armamento – permitiram aumentar as vendas de armas israelitas em todo o mundo. Com efeito, em 2012 essas vendas atingiram o nível recorde de 5,3 mil milhões de euros, arrebatando a França o quarto lugar do palmarés dos exportadores de armas.

Há um ano, a União Europeia recebeu o Prémio Nobel da Paz. Não será já altura de se lembrar disso?»

* Jornalista.

[1] Conclusões do Conselho dos Negócios Estrangeiros da União Europeia, 8 de Dezembro de 2009.
[2] Ler William Jackson, «Destruir este muro ilegal da Cisjordânia», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Novembro de 2004.
[3] Ver «The Prohibited Zone», Bimkom, Jerusalém, 2009, http://bimkom.org.il.
[4] Ver o relatório da Assembleia Nacional francesa sobre a geopolítica da água, que denuncia o «novo apartheid» praticado por Israel neste domínio (Dezembro de 2011), www.assemblee-nationale.fr.
[5] Relatório dos chefes de missão da União Europeia em Jerusalém Oriental, Fevereiro de 2013.
[6] Ler Joan Deas, «O mar encolhe em Gaza», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Agosto de 2012.
[7] Cf. «Failing to Make the Grade. How the EU Can Pass its Own Test and Work to Improve the Lives of Palestinians in Area C», Association of International Development Agencies (AIDA), 10 de Maio de 2013, www.oxfam.org.
[8] «Trading Away Peace: How Europe Helps to Sustain Illegal Israeli Settlements», Fédération internationale des ligues des droits de l'homme, Paris, Outubro de 2012.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Agamben: o pensamento como coragem



«Filósofo italiano contesta quem o vê como pessimista, cita Marx e sustenta: “condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”.

Como os sinos da igreja tocam em Trastevere, onde marcamos nosso encontro, seu rosto vem à mente… Giorgio Agamben apareceu como o apóstolo Filipe em O Evangelho Segundo São Mateus (1964) de Pier Paolo Pasolini. Naquela época, o jovem estudante de Direito, nascido em Roma em 1942, andava com os artistas e intelectuais agrupados em torno da autora Elsa Morante.  Uma Dolce Vita? Um momento de amizades intensas, em todo caso. Pouco a pouco, o jurista virou-se para a filosofia, após seminário de Heidegger em Thor-en-Provence. Então ele lançou-se sobre a edição das obras de Walter Benjamin, um pensador que nunca esteve longe de seu pensamento, bem como Guy Debord e Michel Foucault. Giorgio Agamben tornou-se, assim, familiarizado com um sentido messiânico da História, uma crítica à sociedade do espetáculo, e uma resistência ao biopoder, o controle que as autoridades exercem sobre a vida – mais propriamente dos corpos dos cidadãos. Poético, tal como político, seu pensamento escava as camadas em busca de evidências arqueológicas, fazendo o seu caminho de volta através do turbilhão do tempo, até as origens das palavras. Autor de uma série de obras reunidas sob o título latino Homo sacer, Agamben percorre a terra da lei, da religião e da literatura, mas agora se recusa a ir… para os Estados Unidos, para evitar ser submetido a seus controles biométricos. Em oposição a essa redução de um homem aos seus dados biológicos, Agamben propõe uma exploração do campo de possibilidades.

Berlusconi caiu, como vários outros líderes europeus. Tendo escrito sobre a soberania, quais os pensamentos que esta situação sem precedentes provocar em você? 
O poder público está perdendo legitimidade. A suspeita mútua se desenvolveu entre as autoridades e os cidadãos. Essa desconfiança crescente tem derrubado alguns regimes. As democracias são muito preocupadas: de que outra forma se poderia explicar que elas têm uma política de segurança duas vezes pior do que o fascismo italiano teve? Aos olhos do poder, cada cidadão é um terrorista em potencial. Nunca se esqueça de que o dispositivo biométrico, que em breve será inserido na carteira de identidade de cada cidadão, em primeiro lugar, foi criado para controlar os criminosos reincidentes.

Essa crise está ligada ao fato de que a economia tem roubado um caminho na política? 
Para usar o vocabulário da medicina antiga, a crise marca o momento decisivo da enfermidade. Mas hoje, a crise não é mais temporária: é a própria condução do capitalismo, seu motor interno. A crise está continuamente em curso, uma vez que, assim como outros mecanismos de exceção, permite que as autoridades imponham medidas que nunca seriam capazes de fazer funcionar em um período normal. A crise corresponde perfeitamente – por mais engraçado que possa parecer – ao que as pessoas na União Soviética costumavam chamar de “a revolução permanente”.

A teologia desempenha um papel muito importante em sua reflexão de hoje. Por que isso? 
Os projetos de pesquisa que eu tenho recentemente realizado mostraram-me que as nossas sociedades modernas, que afirmam ser seculares, são, pelo contrário, regidas por conceitos teológicos secularizados, que agem de forma muito mais poderosa, uma vez que não estamos conscientes de sua existência. Nós nunca vamos entender o que está acontecendo hoje, se não entendermos que o capitalismo é, na realidade, uma religião. E, como disse Walter Benjamin, é a mais feroz de todas as religiões, porque não permite a expiação… Tome a palavra “fé”, geralmente reservado à esfera religiosa. O termo grego correspondente a este nos Evangelhos é pistis. Um historiador da religião, tentando entender o significado desta palavra, foi dar um passeio em Atenas um dia quando de repente ele viu uma placa com as palavras “Trapeza tes pisteos”. Ele foi até a placa, e percebeu que esta era de um banco: Trapeza tes pisteos significa: “banco de crédito”. Isto foi esclarecedor o suficiente.

O que essa história nos diz? 
Pistis, fé, é o crédito que temos com Deus e que a palavra de Deus tem conosco. E há uma grande esfera em nossa sociedade que gira inteiramente em torno do crédito. Esta esfera é o dinheiro, e o banco é o seu templo. Como você sabe, o dinheiro nada mais é que um crédito: em notas em dólares e libras (mas não sobre o euro, e que deveriam ter levantado as sobrancelhas…), você ainda pode ler que o banco central vai pagar ao portador o equivalente a este crédito. A crise foi desencadeada por uma série de operações com créditos que foram dezenas de vezes re-vendidos antes que pudessem ser realizados. Na gestão de crédito, o Banco – que tomou o lugar da Igreja e dos seus sacerdotes – manipula-se a fé e a confiança do homem. Se a política está hoje em retirada, é porque o poder financeiro, substituindo a religião, raptou toda a fé e toda a esperança. É por isso que eu estou realizando uma pesquisa sobre a religião e a lei: a arqueologia parece-me ser a melhor maneira de acessar o presente. Os europeus não podem acessar o seu presente sem julgarem o seu passado.

O que é este método arqueológico? 
É uma pesquisa sobre a archè, que em grego significa “início” e “mandamento”. Em nossa tradição, o início é tanto o que dá origem a algo como também é o que comanda sua história. Mas essa origem não pode ser datada ou cronologicamente situada: é uma força que continua a agir no presente, assim como a infância que, de acordo com a psicanálise, determina a atividade mental do adulto, ou como a forma com que o big bang, de acordo com os astrofísicos, deu origem ao Universo e continua em expansão até hoje. O exemplo que tipifica esse método seria a transformação do animal para o humano (antropogênese), ou seja, um evento que se imagina, necessariamente, deve ter ocorrido, mas não terminou de uma vez por todas: o homem é sempre tornar-se humano, e, portanto, também continua a ser inumano, animal. A filosofia não é uma disciplina acadêmica, mas uma forma de medir-se em direção a este evento, que nunca deixa de ter lugar e que determina a humanidade e a desumanidade da humanidade: perguntas muito importantes, na minha opinião.

Essa visão de tornar-se humano, em suas obras, não é bastante pessimista? 
Estou muito feliz que você me fez essa pergunta, já que muitas vezes eu encontro com pessoas que me chamam de pessimista. Em primeiro lugar, em um nível pessoal, isto não é verdade em todos os casos. Em segundo lugar, os conceitos de pessimismo e de otimismo não têm nada a ver com o pensamento. Debord citou muitas vezes uma carta de Marx, dizendo que “as condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”. Qualquer pensamento radical sempre adota a posição mais extrema de desespero. Simone Weil disse: “Eu não gosto daquelas pessoas que aquecem seus corações com esperanças vazias”. Pensamento, para mim, é exatamente isso: a coragem de desesperança. E isso não está na altura do otimismo?

De acordo com você, ser contemporâneo significa perceber a escuridão de sua época e não a sua luz. Como devemos entender essa ideia? 
Ser contemporâneo é responder ao apelo que a escuridão da época faz para nós. No Universo em expansão, o espaço que nos separa das galáxias mais distantes está crescendo a tal velocidade que a luz de suas estrelas nunca poderia chegar até nós. Perceber, em meio à escuridão, esta luz que tenta nos atingir, mas não pode – isso é o que significa ser contemporâneo. O presente é a coisa mais difícil para vivermos. Porque uma origem, eu repito, não se limita ao passado: é um turbilhão, de acordo com a imagem muito fina de Benjamin, um abismo no presente. E somos atraídos para este abismo. É por isso que o presente é, por excelência, a única coisa que resta não vivida.

Quem é o supremo contemporâneo – o poeta? Ou o filósofo? 
Minha tendência é não opor a poesia à filosofia, no sentido de que essas duas experiências tem lugar dentro da linguagem. A casa de verdade é a linguagem, e eu desconfiaria de qualquer filósofo que iria deixá-la para outros – filólogos ou poetas – cuidarem desta casa. Devemos cuidar da linguagem, e eu acredito que um dos problemas essenciais com os meios de comunicação é que eles não mostram tanta preocupação. O jornalista também é responsável pela linguagem, e será por ela julgado.

Como é o seu mais recente trabalho sobre a liturgia nos dá uma chave para o presente? 
Analisar liturgia é colocar o dedo sobre uma imensa mudança em nossa maneira de representar existência. No mundo antigo, a existência estava ali – algo presente.  Na liturgia cristã, o homem é o que ele deve ser e deve ser o que ele é. Hoje, não temos outra representação da realidade do que a operacional, o efetivo. Nós já não concebemos uma existência sem sentido. O que não é eficaz – viável, governável – não é real. A próxima tarefa da filosofia é pensar em uma política e uma ética que são liberados dos conceitos do dever e da eficácia.

Pensando na inoperosidade, por exemplo?
A insistência no trabalho e na produção é uma maldição. A esquerda foi para o caminho errado quando adotou estas categorias, que estão no centro do capitalismo. Mas devemos especificar que inoperosidade, da forma como a concebo, não é nem inércia, nem uma marcha lenta. Precisamos nos libertar do trabalho, em um sentido ativo – eu gosto muito da palavra em francês désoeuvrer. Esta é uma atividade que faz todas as tarefas sociais da economia, do direito e da religião inoperosas, libertando-os, assim, para outros usos possíveis. Precisamente por isso é apropriado para a humanidade: escrever um poema que escapa a função comunicativa da linguagem; ou falar ou dar um beijo, alterando, assim, a função da boca, que serve em primeiro lugar para comer. Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles perguntou a si mesmo se a humanidade tem uma tarefa. O trabalho do flautista é tocar a flauta, e o trabalho do sapateiro é fazer sapatos, mas há um trabalho do homem como tal? Ele então desenvolveu a sua hipótese segundo a qual o homem, talvez, nasce sem qualquer tarefa, mas ele logo abandona este estado. No entanto, esta hipótese nos leva ao cerne do que é ser humano. O ser humano é o animal que não tem trabalho: ele não tem tarefa biológica, não tem uma função claramente prescrita. Só um ser poderoso tem a capacidade de não ser poderoso. O homem pode fazer tudo, mas não tem que fazer nada.

Você estudou Direito, mas toda a sua filosofia procura, de certa forma, se libertar da lei. 
Saindo da escola secundária, eu tinha apenas um desejo – escrever. Mas o que isso significa? Para escrever – o que? Este foi, creio eu, um desejo de possibilidade na minha vida. O que eu queria não era a “escrever”, mas “ser capaz de” escrever. É um gesto inconscientemente filosófico: a busca de possibilidades em sua vida, o que é uma boa definição de filosofia. A lei é, aparentemente, o contrário: é uma questão de necessidade, não de possibilidade. Mas quando eu estudei direito, era porque eu não poderia, é claro, ter sido capaz de acessar o possível sem passar no teste do necessário. Em qualquer caso, os meus estudos de direito tornaram-se muito úteis para mim. Poder desencadeou conceitos políticos em favor dos conceitos jurídicos. A esfera jurídica não pára de expandir-se: eles fazem leis sobre tudo, em domínios onde isto teria sido inconcebível. Esta proliferação de lei é perigosa: nas nossas sociedades democráticas, não há nada que não é regulamentado. Juristas árabes me ensinaram algo que eu gostei muito. Eles representam a lei como uma espécie de árvore, em que em um extremo está o que é proibido e, no outro, o que é obrigatório. Para eles, o papel do jurista situa-se entre estes dois extremos: ou seja, abordando tudo o que se pode fazer sem sanção jurídica. Esta zona de liberdade nunca para de estreitar-se, enquanto que deveria ser expandida.

Em 1997, no primeiro volume de sua série Homo Sacer, você disse que o campo de concentração é a norma do nosso espaço político. De Atenas a Auschwitz… 
Tenho sido muito criticado por essa idéia, que o campo tem substituído a cidade como o nomos (norma, lei) da modernidade. Eu não estava olhando para o campo como um fato histórico, mas como a matriz oculta da nossa sociedade. O que é um campo? É uma parte do território que existe fora da ordem jurídico-política, a materialização do estado de exceção. Hoje, o estado de exceção e a despolitização penetraram tudo. É o espaço sob vigilância CCTV [circuito interno de monitoramento] nas cidades de hoje, públicas ou privadas, interiores ou exteriores? Novos espaços estão sendo criados: o modelo israelense de território ocupado, composto por todas essas barreiras, excluindo os palestinos, foi transposto para Dubai para criar ilhas hiper-seguras de turismo…

Em que fase está o Homo sacer? 
Quando comecei esta série, o que me interessou foi a relação entre a lei e a vida. Em nossa cultura, a noção de vida nunca é definida, mas é incessantemente dividida: há a vida como ela é caracterizada politicamente (bios), a vida natural comum a todos os animais (zoé), a vida vegetativa, a vida social, etc. Talvez pudéssemos chegar a uma forma de vida que resiste a tais divisões? Atualmente, estou escrevendo o último volume de Homo sacer. Giacometti disse uma coisa que eu realmente gostei: você nunca termina uma pintura, você a abandona. Suas pinturas não estão acabadas, seu potencial nunca se esgota. Gostaria que o mesmo fosse verdade sobre Homo sacer, para ser abandonado, mas nunca terminado. Além disso, eu acho que a filosofia não deve consistir-se demais em afirmações teóricas – a teoria deve, por vezes, mostrar a sua insuficiência.

É esta a razão pela qual em seus ensaios teóricos você tem sempre escrito textos mais curtos, mais poéticos?
Sim, exatamente isso. Estes dois registros de escrita não ficam em contradição, e espero que muitas vezes até mesmo se cruzem. Foi a partir de um grande livro, O Reino e a Glória, uma genealogia do governo e da economia, que eu fui fortemente atingido por essa noção de inoperosidade, o que eu tentei desenvolver de forma mais concreta em outros textos. Esses caminhos cruzados são todos o prazer de escrever e de pensar.»

 Entrevista a Juliette Cerf, na Verso | Tradução Pedro Lucas Dulci

sexta-feira, 11 de julho de 2014

OCDE: a cidadela do conformismo intelectual



«O secretário-geral da OCDE Angel Gurría, ex-ministro das Finanças do México, veio hoje a Portugal apresentar o relatório da organização sobre o país. Não poupando nos elogios à política austeritária do governo, lembrou que as reformas estruturais em curso são «um processo» a continuar e aconselhou, por exemplo, mais reformas no mercado do trabalho, em particular ao nível da contratação colectiva. Excelente dia, portanto, para recuperar um artigo que publicámos em Julho de 2012, em que se analisa o papel da OCDE na promoção da globalização noliberal (privatizações, desregulação, liberalização) e em que se recorda outros «relatórios» da organização, relativos à Irlanda e à Islândia em 2008, como outros tantos «oráculos» cheios de ideologia mas totalmente contrariados pela realidade.

Promotores incansáveis da globalização (e do seu tríptico privatização-desregulação-liberalização), os peritos da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) parecem por vezes ter esquecido o passado keynesiano da sua instituição. Com efeito, as paredes do palácio de La Muette, em Paris, sua sede desde há cinquenta anos, escondem uma história tão desconhecida como inesperada.

«Clube dos países ricos», «think tank neoliberal», «paraíso dos poderosos», «OTAN da economia», «especialista dos prognósticos falhados», «braço armado da globalização»… As fórmulas variam, mas a constatação é menos discordante. A reputação da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) contrasta com a imagem que esta instituição deseja projectar, a de um «fórum que leva os governos a responder, em conjunto, aos desafios económicos, sociais e ambientais criados pela interdependência e pela globalização», ou de uma «fonte de dados comparativos, de análises e previsões destinados a apoiar a cooperação multilateral» [1].

Para lá dos relatórios, o funcionamento da organização é tão desconhecido como é incontornável a sua assinatura. Pois não figura esta nos numerosos palmarés e quadros estatísticos publicados na imprensa sempre que se trata de classificar os «desempenhos» dos sistemas educativos, de listar os paraísos fiscais ou de comparar as «legislações protectoras do emprego» que entravam a sã «flexibilidade do mercado de trabalho»?

Em 2011, a organização sedeada no palácio de La Muette comemorou o seu cinquentenário com uma cerimónia de aparato em que foi reescrito o seu percurso. Porque, embora ela se gabe de ter recebido com grande pompa catorze chefes de Estado, onze primeiros-ministros, setenta ministros, mil delegados, mais de uma centena de conferencistas e quase duzentos jornalistas, poucos convivas interrogaram a movimentada história de uma organização marcada pelas alternâncias políticas, pelos movimentos sociais e pelas reviravoltas económicas da segunda metade do século XX.

Em contrapartida, o auditório pôde ouvir a secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton sublinhar que a criação em 1948 da Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE), na sequência do European Recovery Program (o chamado «Plano Marshall»), e posteriormente a sua transformação em OCDE em 1960-1961, ilustram uma «comunidade de valores partilhados, [os] dos mercados abertos e eficientes, dos direitos humanos, das liberdades e do Estado de direito, dos governos e dos dirigentes que devem prestar contas, de uma concorrência livre, justa e transparente». Que importa que esta visão da história promova à categoria de grandes democracias co-fundadoras da OCDE a Espanha franquista, o Portugal salazarista ou a Turquia de Cemal Gürsel (e mais tarde a Grécia dos coronéis)? 

Fábula internacionalista

O ditirambo de Hillary Clinton respeitou a ordem das prioridades: primeiro a economia de mercado, depois a democracia. Brinde ao capitalismo em 1947, perante um inimigo comunista que iria organizar uma cooperação económica concorrente, através do Plano Molotov e do futuro Conselho de Assistência Económica Mútua (COMECON). Brinde repetido em 1960, a poucos meses da construção do Muro de Berlim.

O 50.º aniversário da OCDE foi uma oportunidade para exaltar a «independência» da organização, a sua «abertura à sociedade civil», a «competência internacional de muito alto nível» dos seus economistas (setecentos e cinquenta, em áreas de intervenção cada vez mais variadas), bem como o seu papel precursor em numerosos repertórios tecnocráticos que passaram a ser incontornáveis: «desenvolvimento sustentável e mercados de direitos a poluir», «sociedade do conhecimento», «activação das políticas do emprego», «capital social e capital humano», «luta contra a corrupção», «armadilhas de pobreza», «reformas estruturais», etc. Houve também muitas congratulações pelas recentes adesões do Chile, da Eslovénia, da Estónia e de Israel, que aumentaram para 34 o número de membros da OCDE.
Perante as «virtudes» do comércio livre, e para sair melhor da crise económica, o secretário-geral da organização, o antigo ministro das Finanças mexicano Ángel Gurría, teve de limitar-se a pronunciar a habitual defesa de uma cooperação económica reforçada, talvez alargada a futuros países membros, tais como o Brasil, a Índia, a Indonésia, a África do Sul, ou até… a China e a Rússia. Mas a deprimente actualidade económica internacional, embora atenuada pelos bolinhos servidos aos convivas e pelas espessas carpetes do novo salão dos congressos, tornou a fábula internacionalista – intitulada «Políticas melhores para uma vida melhor» – ainda mais soporífica do que de costume.

Alguns episódios foram ocultados, talvez porque a sua evocação teria perturbado os festejos: o insucesso do Acordo Multilateral sobre Investimento (AMI), em 1998 [2] , ou, no início da década de 1980, os confrontos entre o secretariado da OCDE e «falcões» da administração Reagan como Martin Feldstein (actual conselheiro de Barack Obama). Stephen Marris, conselheiro especial do secretário-geral da organização, criticou nessa altura a nocividade e os efeitos colaterais da política económica e monetária reaganiana. Foi despedido e passou a ser persona non grata na instituição. Foram também apagados os nomes de antigos funcionários ou colaboradores, tais como Gösta Rehn, Alexander King, Christopher Dow, Angus Maddison, Ron Gas, para não falar de Cornelius Castoriadis, François Chesnais ou Michael Pollak. Todos seriam hoje considerados «heterodoxos», ou mesmo «arcaicos». Contribuíram, contudo, a diversos níveis, para fazer da instituição… aquilo em que ela não se tornou.

Porque de facto há nichos, numa organização como esta, para vozes minoritárias e audácias intelectuais. Mas a OCDE obedece a uma tal hierarquia, e a uma axiomática geral tão estreitamente ligada, sobre as questões estratégicas, às forças públicas ou privadas que dominam as relações económicas internacionais, que os discursos discordantes ou críticos são marginalizados ou reduzidos ao silêncio. Isto, aliás, tanto se registou no período keynesiano da instituição como se verifica no seu período neoliberal; com uma ressalva: o controlo dos recrutamentos e das carreiras efectua-se agora através de um «sistema de avaliação dos desempenhos» e a titularização é tributária de uma direcção do pessoal mais intrusiva, pouco propícia a eventuais audácias.

Desde as mobilizações anti-AMI e com vista a lutar contra uma imagem pública desastrosa em que a opacidade rivaliza com o dogmatismo, a organização desenvolveu um verdadeiro marketing da transparência. Mas em tudo o que diz respeito à vida real de uma instituição deste género e em tudo o que a transforma num problema de conhecimento [3], continuam a aplicar-se as mesmas práticas: forçosa reescrita dos estudos; endurecimento, para o exterior, das frágeis conclusões evocadas no interior; demissões forçadas…

Embora o discurso oficial entoe o bem conhecido refrão da «independência» e da «competência» dos seus peritos, as raríssimas investigações feitas sobre a OCDE constatam que as delegações dos países-membros intervêm em momentos-chave da elaboração dos emblemáticos relatórios da organização. Quer directamente, fazendo-se convidadas para participar na redacção dos diagnósticos e das previsões ou no enquadramento das problemáticas, quer indirectamente, quando os funcionários da OCDE mostram antecipadamente as suas reacções negativas e adequam as suas conclusões às suas expectativas para tornar os relatórios aceitáveis. Trata-se muitas vezes de não inovar em matéria de análise e de recomendações económicas e sociais, e de atribuir a políticas nacionais impopulares uma legitimação decorrente da «peritagem» internacional (coisa que, no fim de contas, é apenas o destino comum das burocracias supranacionais, como ainda recentemente mostrou o terrível relatório do organismo independente de avaliação do Fundo Monetário Internacional [FMI]) [4].

Ao contrário de outras instituições do mesmo género, a OCDE não distribui fundos nem produz regras jurídicas. A sua razão de ser reside na incansável produção de relatórios e no relacionamento de milhares de peritos (passam todos os anos pelos seus grupos de trabalho cerca de quarenta mil analistas). Esta peritagem, encabeçada operacionalmente pelo gabinete do secretário-geral e pelo conselho de ministros dos países-membros, baseia-se nos trabalhos de uma quinzena de direcções, cuja estrutura estanque é grandemente decalcada das compartimentações e relações de força ministeriais nacionais.

O Departamento dos Assuntos Económicos é pois o mais influente no âmbito interno; está na origem das publicações estratégicas da instituição e dispõe do efectivo mais numeroso, versado na mais estandardizada disciplina económica universitária. Este departamento, cujo director é o economista-chefe da organização, impulsiona também a Comissão de Política Económica, composta por delegados dos Tesouros e dos bancos centrais (redes das elites burocráticas dominantes). Existe assim uma profunda homologia de estruturação entre o nacional e o internacional, a qual constitui a verdadeira correia de transmissão entre a OCDE e as esferas burocráticas e universitárias nacionais.

Percurso polido como convém, não se encontra nos opúsculos do 50.º aniversário da OCDE a mais leve referência às receitas económicas keynesianas associadas à prosperidade do pós-guerra e com base nas quais a organização se construiu, antes de passar a ser um dos porta-vozes do (neo)liberalismo doutrinário.

Nada consta, portanto, sobre o jogo cooperativo posto em aplicação pelos Acordos de Bretton Woods, em 1944, ou seja, sobre a rigorosa limitação dos movimentos de capitais internacionais que tinha em vista proteger as novas medidas de planificação nacional (política industrial, sistemas sociais), refrear os poderes dos financeiros (considerados responsáveis da crise de 1929) e autorizar, pela negociação multilateral, políticas cambiais e de relançamento associadas entre si.

No entanto, o grupo de trabalho n.º 3 da Comissão de Política Económica da OCDE serviu de arena a essas negociações e deu aos governos recursos estatísticos e econométricos que permitiram a coordenação de políticas cujo objectivo prioritário era o pleno emprego. A recomposição do sistema monetário internacional em torno dos mercados financeiros, acompanhada pela viragem reagano-thatcheriana, pesou sobre o equilíbrio de forças no seio da OCDE e reorientou as prioridades em torno da desinflação e da flexibilização dos mercados de trabalho, voltando neste plano à era pré-keynesiana e à visão mais grosseira do desemprego e dos desempregados.

Só por força da forte contestação do AMI, do desenvolvimento das capacidades de peritagem da União Europeia em matéria social e das alternâncias políticas sociais-liberais a OCDE se viu obrigada, no início dos anos 2000, a inflectir o seu discurso, baseando-se em investigações menos dogmáticas. O seu secretário-geral de então, o canadiano Donald Johnston, tentará ao longo do seu mandato travar a «contestação»: «A globalização não é ideológica, é um processo irresistível. As trocas comerciais e o comércio livre engendraram sempre enormes vantagens. Em geral, os contestatários exerceram uma pressão benéfica e contribuem com uma louvável peritagem» [5]. Na mesma altura, a associação ecologista Amigos da Terra atribuiu-lhe o «troféu da hipocrisia» por ele denunciar o posicionamento da OCDE sobre as temáticas do desenvolvimento sustentável, identificado com uma estratégia de «enverdecimento» da organização e do capitalismo.

Sempre as mesmas receitas 

Meses antes, o diário Le Figaro, sob o título «O progresso social é prioritário», dava conta das declarações de Donald Johnston, que inauguravam a nova montra ideológica da OCDE: «É um erro separar a Comissão Social e a Comissão Económica. Foi este modelo que reproduzimos na OCDE. (…) A componente principal do crescimento económico é uma sociedade baseada no saber. A partir desta constatação, é impossível separar as questões sociais, a formação, a saúde, em suma, separar dos interesses económicos a qualidade do capital humano que está no âmago do crescimento. Compreendo muito bem que a OCDE tenha podido transmitir a imagem de uma organização desequilibrada na sua abordagem dos problemas, mas hoje já não é assim» [6] O relatório apresentado nessa ocasião pelo secretário-geral, com um tom digno do Fórum Social Mundial de Porto Alegre (criado em 2001), intitulava-se «Por um mundo solidário – A nova agenda social».

Com efeito, na bolsa de valores da OCDE a cotação do «social» aumentou subitamente. Nos «estudos por país», isso passa por insistir no crescimento, na dependência dos desempregados de longa duração dos dispositivos de indemnização ou na «exclusão social». Para o Departamento do Emprego e das Questões Sociais, foi a oportunidade de obter novas encomendas, de os seus trabalhos se tornarem mais conhecidos e de expor uma «reavaliação» da «estratégia para o emprego» da organização. E esta afasta-se dos considerandos mais dogmáticos da década anterior. Em 2006 reconhece que o salário mínimo pode exercer efeitos positivos (se for fixado num «nível razoável») e que não foi estabelecida nenhuma ligação sólida entre «legislação protectora do emprego» e falta de resultados na luta contra o desemprego [7]. Passa a afirmar que não há apenas uma via, que há diversas vias possíveis; os modelos anglo-saxónico e escandinavo, por exemplo, têm desempenhos equivalentes no emprego e no desemprego, um porque suscita maiores desigualdades, o outro porque fomenta maiores despesas públicas. Os temas da «flexibilidade» à dinamarquesa e da «coesão social» surgem nessa altura como suficientemente plásticos para incorporar melhor a «dimensão social» e para não romper com a posição de princípio na luta contra as «rigidezes estruturais» [8].

Por último, dá-se no Departamento de Estatística, em 2001, o regresso a uma reflexão sobre os «indicadores sociais» ou de «bem-estar», sob as designações de «capital social» e de «capital humano» [9]. Coisa que o levará, no fim da década, a assegurar a maior parte da logística do relatório da Comissão de Avaliação dos Desempenhos Económicos e Progresso Social, a chamada «Comissão Stiglitz-Sen-Fitoussi». Nas comemorações do cinquentenário, este departamento proporá uma nova publicação, intitulada Como vai a vida? Medir o bem-estar, como de costume feita em ambiente estanque. É uma tentativa para pensar a quantificação da «riqueza» ou do «bem-estar» das nações saindo do economicismo mais estreito, integrando indicadores sobre a educação, a saúde, a qualidade do ambiente, etc., mas sem insistir muito nos indicadores de «saúde social» (pobreza e desigualdades, cobertura da segurança social na doença ou no desemprego, etc.) [10]. Regista-se nessa publicação que os Estados Unidos partilham com o Chile, o México, a Turquia e Israel as mais pronunciadas desigualdades de rendimentos, assinalando que «em muitos países da OCDE aumentou o número de pessoas cujo rendimento é inferior ao limiar de pobreza» [11].

Estes realinhamentos podem ser analisados como uma recomposição forçada das estratégias de alianças. Seduzem e rearmam de momento os governos neodemocratas ou sociais-liberais (então dominantes na Europa) preconizando uma «terceira via» entre os projectos social-democrata e neoliberal, com base no modelo blairista ou clintoniano. Procuram tranquilizar os novos países aderentes, os quais, escaldados pelos planos de ajustamento estrutural do FMI, começam a organizar-se através de formas cooperativas alternativas, tais como a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ANASE, em inglês ASEAN) ou a União das Nações Sul-Americanas (UNASUR). Mais geralmente, a OCDE procura sair do trilho político e científico: como enfrentar a crítica, expressa pelos alterglobalistas e por organismos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre os «custos sociais» do neoliberalismo [12]? Como explicar o sucesso económico e social dos países que não aplicam a desregulação?

Contudo, esta inflexão do discurso da OCDE não diz respeito às políticas monetárias e orçamentais ou à desregulação dos mercados. Pelo contrário, o seu novo programa macroeconómico, intitulado «Going for Growth» (traduzido como «Objectivo Crescimento») e desenvolvido pelo Departamento Económico, prolonga em 2005 a orientação das décadas de 1980 e 1990, mantendo como alicerce inamovível a desinflação competitiva, a desregulação e a flexibilização do mercado do trabalho.

Em plena tormenta financeira, as conclusões da reunião do conselho de ministros de 24 e 25 de Junho de 2009 não enganam quanto à axiomática geral da organização: «Reconhecemos que a rápida aplicação das reformas estruturais que aumentam a flexibilidade e a produtividade das nossas economias, por exemplo nos mercados do trabalho e dos produtos, será essencial para remediar a deterioração dos nossos orçamentos públicos e o recuo do nível de vida provocado pela crise» [13].

Na edição de 2006 de «Reformas económicas», o economista-chefe de então, Jean-Philippe Cotis – actual director do Instituto Nacional de Estatística e dos Estudos Económicos (INSEE) francês –, considerava que «os entraves à concorrência no sector bancário tendem a travar o desenvolvimento do sector financeiro e, por conseguinte, o crescimento económico» [14].
Oráculos aleatórios
VINCENT GAYON, com MILENA YOUNES-LINHART
Em 2008, no seu relatório dedicado à Irlanda, os economistas da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) classificam os bancos do país como «muito rentáveis e muito bem capitalizados, o que deverá dar-lhes uma forte capacidade para resistir ao choque». Sublinham a sua «muito fraca exposição ao mercado hipotecário americano»(«Études économiques de l'OCDE: Irlande», OCDE, Paris, 2008). Passado um ano, a crise do subprime arruína a Ilha Esmeralda, cujo défice orçamental atinge o recorde de 32% do produto interno bruto (PIB).
Quanto ao estudo económico de 2008 dedicado à Islândia, remete-se, para avaliar o sector financeiro do país, para os organismos de supervisão e notação, como a Moody's, que «consideram o sistema financeiro, de modo geral, saudável. Os testes de stress parecem indicar que os bancos dispõem de capitais suficientes para resistir a choques de grande dimensão no crédito e no mercado. (…) Apesar dos receios dos investidores, a situação dos bancos islandeses é saudável à luz da maioria dos critérios, como é testemunhado pela sua nota geralmente boa»(«Études économiques de l'OCDE: Islande», OCDE, Paris, 2008.). No ano seguinte, após a bancarrota de Outubro de 2008, que arrasta consigo a economia do país, os mesmo autores assinalam com atrevimento que «pode ter-se sérias dúvidas sobre a capacidade que o governo islandês terá para salvar bancos tão grandes como aqueles em caso de dificuldades. Nas condições financeiras ambientes, praticar o ofício de banqueiro estando privado de um tal apoio torna-se portanto extremamente perigoso»(«Études économiques de l'OCDE: Islande», OCDE, Paris, 2009. ).
A OCDE em números
Sede: Palácio de La Muette, Paris.
− 34 Estados-membros.
− 342 milhões de euros de orçamento.
− Principais contribuintes: Estados Unidos (25%), Japão (16%), Alemanha (9%), Reino Unido e França (7,5%).
− 40 000 especialistas por ano em grupos de trabalho.
− 2500 funcionários, entre os quais 750 economistas e 1750 tradutores, intérpretes, especialistas em estatística, pessoal administrativo e técnicos.
− Vencimento de base (fora subsídios), isento de impostos: economistas, entre 4000 e 11 000 euros; intérpretes, entre 4000 e 8000 euros; pessoal de apoio, entre 2500 e 4500 euros.
− 250 publicações bilingues por ano.
Dados: 2011.»
[1] Excertos extraídos de «Diaporama», www.oecd.org.
[2] Revelado em França num artigo do Le Monde diplomatique: Lori M. Wallach, «O novo manifesto do capitalismo mundial», Fevereiro de 1998.
[3] Cf. Jacques Lagroye e Michel Offerlé (dir.), Sociologie de l'institution, Belin, Paris, 2010.Cf. Jacques Lagroye e Michel Offerlé (dir.), Sociologie de l'institution, Belin, Paris, 2010.
[4] Ler Pierre Rimbert, «Bonnet d'âne pour le FMI», Le Monde diplomatique, Agosto de 2011.
[5] «L'OCDE est un des pistons de la mondialisation», Libération, Paris, 7 de Agosto de 2002.
[6] «Le progrès social est prioritaire», Le Figaro, Paris, 2 de Março de 1999..
[7] «Perspectivas do emprego. Estimular o emprego e os rendimentos», OCDE, Paris, 2006.
[8] «Perspectivas do emprego», OCDE, Paris, 2004.
[9] «Do bem-estar das nações: o papel do capital humano e social», OCDE, 2001.
[10] Cf. os trabalhos de reflexão animados pelo Fórum por Outros Indicadores de Riqueza (FAIR).
[11] «Como vai a vida? Medir o bem-estar», OCDE, 2011. Ler também Pierre Rimbert, «Na OCDE, penso logo fujo», Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Março de 2012.
[12] Comissão Mundial sobre a Dimensão Social da Globalização, «Uma globalização justa: criar oportunidades para todos», OIT, Genebra, 2004.
[13] C/MIN (2009) 5/FINAL.
[14] «Reformas económicas. Objectivo crescimento», OCDE, Paris, 2006.


VINCENT GAYON *
* Investigador no Instituto de Investigação Interdisciplinar em Ciências Sociais (IRISSO), Paris.