sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Poder público e poder privado

The Power of YesImage via Wikipedia



António Campos


É estranho que no mundo de hoje o debate político se desvie do seu tema natural, que é a distribuição do poder, para se centrar quase exclusivamente na distribuição da riqueza. Não quero com isto dizer que a economia não seja relevante, ou mesmo determinante, no debate público, nem que seja possível discutir o poder sem discutir a riqueza; mas certamente também não é possível discutir a riqueza ou a sua distribuição sem discutir o poder e a sua titularidade.

O vício intelectual do economicismo está de tal forma arreigado em nós que acabámos por excluir a política do próprio debate político. Quando dizemos "o público" e "o privado", toda a gente entende que estamos a falar de sectores da economia e não, como seria natural, da fronteira entre o individual e o social. Num país em que a república foi "instaurada" mas nunca inteiramente constituída, qualquer debate político sobre a polis e a cidadania parece-nos antediluviano e estrangeirado; e um político que o traga insistentemente à baila(...), parece-nos mais velho do que realmente é.
Este texto tem como pretexto o livro de David Marquand cuja capa o ilustra. Marquand escreveu-o a pensar no seu país, eu li-o a pensar no meu. Não é minha intenção fazer uma paráfrase ou um resumo fiel nem é minha preocupação explicitar fronteiras claras entre as minhas opiniões a as dele, nem entre as dele e as de Karl Polanyi, um autor que Marquand refere extensa e repetidamente.

Ao pegar neste livro, pensei que se tratava de mais um contributo para o velho debate, sempre interessante, entre estado e mercado. Não podia estar mais enganado, como comecei a perceber logo que cheguei à página de rosto e encontrei o subtítulo omitido na capa: The Hollowing-out of Citizenship. O livro refere abundantemente o mercado e o estado, mas o seu tema central é a tensão entre a esfera privada das emoções, acções e pensamentos individuais e a esfera pública da cidadania.

Na introdução, Marquand diz ao que vem e define os seus termos. Para isso, distingue três domínios (e não àqueles dois a que os termos pré-formatados do debate mediático nos têm habituado). São eles: o domínio privado, que não coincide com aquilo a que na terminologia corrente se chama sector privado; este domínio privado define-se por referência às pessoas concretas, com os seus pensamentos e emoções, as suas relações de amizade, de família ou de clã, os seus valores subjectivos, a sua moral individual e os seus interesses individuais - económicos ou outros. O segundo é o domínio do mercado e da troca, que se ocupa apenas do que é transaccionável e consequentemente não coincide com o domínio privado, embora possa intersetá-lo.

O terceiro é o domínio público da política propriamente dita, que pode intersetar o setor público da economia mas, mais uma vez, não coincide inteiramente nem necessariamente com ele. O domínio público, para Marquand, "é o domínio da cidadania, da equidade e do serviço público. [A sua integridade] é indispensável à governação democrática e ao bem estar social. Tem a sua própria cultura e os seus próprios métodos de decisão. Nele, a cidadania prevalece tanto sobre o poder do mercado como sobre os laços de clã ou de família. [ ... ] Só pode tomar forma numa sociedade em que a noção de interesse público, distinto dos interesses privados, se tenha enraizado."

Mas, "enquanto o domínio privado do amor, da amizade e dos contactos pessoais e o o domínio do mercado são dados da natureza, o domínio público depende duma manutenção continuada e cuidadosa".

Se a república é um artefato, põe-se a questão de quem é o artífice. Para Marquand, e no que respeita a história particular do Reino Unido, a coisa pública foi construída por uma elite intelectual e política (hoje dir-se-ia, depreciativamente, um grupo de "iluminados"), pacientemente e de modo planeado, ao longo do século XIX e princípio do século XX; e está hoje a ser demolida, de modo igualmente planeado mas muito menos paciente, pelos iluminados herdeiros políticos de Margaret Thatcher.

No Século XVIII o poder político era essencialmente privado. Era prerrogativa tradicional de pessoas concretas e identificáveis e não decorria dos cargos que provisoriamente pudessem desempenhar. Um baronete do Surrey podia ser nomeado coronel na Índia - ou melhor, podia comprar o posto de coronel - mas o seu poder na sociedade decorria, não do posto militar, mas da sua condição social. Se mandava oficialmente na Índia, era para melhor mandar privadamente no Surrey. O poder exercia-se através da influência e da fortuna pessoal, da sucessão dinástica, das solidariedades de família e de clã e de toda uma panóplia de costumes, tabus e tradições para a qual em nada tinha contribuído, nem a vontade cívica dos governados, nem a vontade política dos governantes.

Este regime ficou conhecida no século seguinte, entre os impulsionadores da reforma republicana, como "the old corruption". A esta corrupção chama Marquand "monarquia", porque reside numa pessoa identificável individualmente sem que se estabeleça qualquer distinção entre a pessoa privada e a pessoa pública. O oposto de "monarquia" poderia ser "poliarquia", mas esta é uma palavra que Marquand não tem necessidade de utilizar quando dispõe da noção muito mais clara de "domínio público".

Por outro lado, a pauperização extrema duma parte da população, prevista por todos os economistas clássicos do século XIX como economicamente inevitável (The Iron Law, diziam eles), atingiu no annus horribilis de 1840 um ponto tal de degradação humana que se tornou politicamente insustentável. Alguns espíritos lúcidos (como Gladstone, e outros antes e depois dele), reconhecendo que o economicamente possível e o politicamente possível só são conciliáveis no âmbito duma polis, trataram de a projetar e construir.

Uma das maiores dificuldades de um projeto como este está em que uma polis funcional tem que ser simultaneamente igualitária e elitista. Igualitária porque todos somos iguais na cidadania; elitista porque as diversas formas de autoridade exigem legitimações diferentes, que incluem as formalidades do processo democrático mas não se esgotam nelas. A construção da igualdade na cidadania demorou um século e envolveu os esforços de centenas ou milhares de pessoas. A atestar o seu êxito temos os números: entre 1832 e 1928, em etapas sucessivas, a abrangência da franquia democrática evoluiu de 14% dos homens e 0% das mulheres até 100% dos homens e 100% das mulheres.

A outra vertente da reforma republicana exigia a legitimação de elites que contrabalançassem a tendência "monárquica" inerente a todo o poder político. Esta legitimação implicou por um lado a instituição de um quadro de funcionários públicos superiores recrutados em função do seu compromisso ético com o bem público (o que devia parecer a mais desvairada das utopias numa época em que a compra de cargos públicos era vista como normal). Estes quadros deveriam ser possuidores duma sólida formação humanista e gozar de condições de estabilidade e prestígio que lhes conferisse a necessária profissionalidade e independência, de modo a não se tornarem "yes men" dos sucessivos governos. E implicou por outro lado a formação de classes profissionais legitimadas pelo saber e por uma ética de serviço público, explicitada nos respectivos códigos deontológicos. Este projecto não teve, como nunca poderia ter, êxito completo; mas teve êxito suficiente para possibilitar ao longo de várias décadas a permanência desse bem tão precioso e tão frágil que é uma república.

O contraste entre este processo e o que se passou em Portugal é tão flagrante que até dói. No Reino Unido, porque se constituiu a república, não foi preciso "instaurá-la." O regime monárquico pôde ser mantido na forma porque tinha sido efectivamente abolido na substância. Em Portugal, a república foi "instaurada" em 1910, mas nunca chegou a ser constituída de forma sólida e consequente. O exercício efectivo do poder continuou a ser predominantemente monárquico e assim continua até hoje.

Mas se a reforma republicana diferiu tanto nos dois países, desde logo porque num se concluiu e no outro não, já a contra-reforma anti-republicana obedece ao mesmo padrão, que é o que está a ser aplicado um pouco por todo o mundo desenvolvido. Assim se explica a sensação de familiaridade que experimentamos ao ler em Marquand os métodos e as estratégias desta contra-reforma. 
A demonização do funcionalismo público; a sujeição dos seus quadros superiores a um dever de lealdade pessoal aos governantes enquanto pessoas privadas em detrimento das pessoas públicas que eles também são - e em detrimento, sobretudo, da lealdade que devem à república; a proletarização e desautorização das classes profissionais; a obsessão com tudo o que seja objectivos quantificáveis e a destruição iresponsável e bárbara de tudo o que o não é; o proliferar de sistemas de avaliação estilo rococó que são, no dizer de Boaventura Sousa Santos, tão impecáveis no rigor formal quanto fraudulentos na substância; a falsa descentralização e as falsas autonomias que puxam para o centro todo o poder de decisão ao mesmo tempo que empurram para a periferia toda a responsabilidade pelas decisões tomadas; o anti-elitismo populista; o combate cego aos impostos, sobretudo aos progressivos, como se pagar impostos não fosse marca e condição da cidadania - tudo isto é descrito por Marquand , com abundantes exemplos, em referência à realidade britânica. Mas nenhum autarca português, nenhum médico, enfermeiro ou professor, nenhum advogado que não pertença aos grandes escritórios, nenhum académico, intelectual ou artista, nenhum cientista, nenhum jornalista, nenhum economista que não pertença ao reduzido grupo que trabalha para a banca e domina os media poderá ler Marquand sem encontrar acrescida confirmação na sua própria experiência profissional e pessoal.

Toda esta estratégia conduz à transformação dos regimes republicanos em "monarquias de primeiro-ministro" ao serviço de oligarquias financeiras. Daqui decorre a ideia que Marquand denuncia perto do final do livro, confiante em que qualquer leitor inglês a verá como monstruosa: a de que compete exclusivamente ao governo definir o que é o bem público. E lembro-me, ao ler isto, das palavras de Vital Moreira, já com um pé na escada do avião que havia de o levar a Estrasburgo, a propósito do conflito entre os professores e o governo: "Só ao governo compete definir o bem público."

Poucos portugueses terão visto nesta frase a enormidade que é. Que melhor razão do que esta haveria para suspeitar que Portugal nunca foi, no sentido pleno do termo, uma república?

JOSÉ LUIZ SARMENTO (adaptado com a devida vénia)
Out. 2010

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